Goiânia ( segundo Manuel Ferreira Lima Filho)
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Revista de Antropologia
Goiânia: uma cidade patrimonial?
No Cerrado nasce Goiânia
A decisão de se construir Goiânia, uma nova capital para o
estado de Goiás, era a de que a velha capital, cidade de Goiás,
fundada em 1726, à margens do Rio Vermelho, não mais apresentava
condições geográficas e ambientais para o desenvolvimento
de uma capital de um Estado que tinha como principal meta romper
com a noção de atraso que o imaginário nacional tinha sobre ele.
Aliado a esse fato, registra-se a trama política coordenada pelo
interventor Pedro Ludovico Teixeira, com total apoio do presidente
Getulio Vargas, de enfraquecer o comando tradicional de velhas oligarquias
no Estado, notadamente a dos Caiado, deslocando a capital
de um espaço político e social liderados por alguns de seus representantes.
Nessa primeira onda bachelariana do tempo, Goiânia nasce
assim como ruptura, um vetor da cidade de Goiás. Suas primeiras
formas espaciais são pensadas nas pranchas dos urbanistas e projetistas.
Em 1933, sua pedra fundamental é lançada onde hoje é o poço do
elevador do Palácio das Esmeraldas, residência oficial do governador,
na praça central da cidade indicada por Attílio Correa Lima com um
pedaço de osso de uma ema diante de um cerrado aberto e plano
(Metran, 2006).
Essa ruptura espacial e temporal não foi tão pacífica assim. Houve
resistências, e a cidade de Goiás se dividiu. Mas o fato é que Goiânia
começa a ser construída em 1933. O poder legislativo e o executivo são
transferidos em 1937, e o batismo cultural da cidade aconteceu em
1942 com grande mobilização nacional.
Com os primeiros anos, algumas famílias da cidade de Goiás
mudaram para Goiânia, enquanto outras permanecem. E assim, separam-
se ritmos entre as cidades: Goiás se volta para continuar suas
formas de sociabilidade nascidas de uma passado colonial, com suas
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Manuel Ferreira Lima Filho
festas religiosas, seus alfenins, suas igrejas, seus artistas, sua elite,
álem de sua periferia profundamente identificadas com símbolos do
mundo rural. Não pára no tempo, mas segue seu próprio ritmo,
historicidades, sociabilidades e referências culturais e identitárias.
Goiânia, por sua vez, busca a velocidade da modernização, de cumprir
sua meta de metrópole no Planalto Central do Brasil, como um ensaio
experimental para a construção de Brasília anos depois, e, ao mesmo
tempo, inspirada na experiência de Belo Horizonte no final do século
XIX.
Foto 01: Praça do Coreto na cidade de Goiás, no ínicio do século XX
Fonte: Craveiro (1994)
O Plano urbanístico da nova cidade, concebido por Attílio Correa
Lima, de influência francesa, explorou a topografia do sítio, pois o
traçado proposto para o núcleo pioneiro de Goiânia favorecia a drenagem
por topografia, integrando as microbacias hidrográficas. Ele
procurou privilegiar o sistema viário com avenidas largas, sistemas de
estacionamento, beneficiando assim o comércio. Utilizou-se, então de
uma malha ortogonal. Para a zona industrial, nas imediações da estrada
de ferro concebeu desvios e uma estação de triagem. Para a zona
residencial o plano previa uma área tranqüila, distante do movimento
do centro. Reservou, em seus planos, grandes áreas verdes que visavam
a salubridade e a beleza. O plano por ele elaborado criava os setores
central, norte, sul, oeste e leste com delimitação espacial bem definida.
Com mão de obra recrutada do interior de Goiás e de outras regiões do
país construiu-se assim Goiânia. (Machado et al, 2003 e Silva, 2006).
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Goiânia: uma cidade patrimonial?
Mais tarde, outro urbanista, Armando de Godoy, de influência inglesa,
continua a projetar os primeiros traços da nova capital inspirado na
cidade jardim inglesa.
Podemos observar na tabela abaixo o crescimento demográfico
da cidade entre as décadas de 1940 a 1980:
1940 19.000 habitantes
1950 53.000 habitantes
1960 150.000 habitantes
1980 700.000 habitantes
1998 1 milhão
2006 (estimativa em julho) 1.220,412 habitantes
Dados Populacionais da Cidade de Goiânia (1940-2006)
Fonte: IBGE (2007)
Projetada para ter 50.000 habitantes, a população de Goiânia
cresceu rapidamente, unindo-se a Campinas, que dela estava separada
por 6 km. Campinas tornou-se um bairro de Goiânia, como muitos
outros que foram surgindo (Machado et al, 2003).
Tornando-se “Patrimônio”
No ano de 2002, Goiânia é alvo de um processo de tombamento
Federal de seu Núcleo Pioneiro juntamente com edifícios públicos e
componentes Art Decó (IPHAN, 2002). O Estilo Art Déco foi lançando
oficialmente em 1925, em Paris. A arquitetura é marcada por volumetria
geométrica, simétrica e imponente, com ornamentação e, portanto,
muitos elementos decorativos. No Brasil, foi amplamente difundido no
período do Estado Novo, tendo como exemplo típico a torre do relógio
da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, e quase todas os edifícios dos
Correios espalhados pelo país construídos nessa época. Em Goiânia, o
estilo foi adotado nos principais prédios públicos.
O processo de tombamento do conjunto de elementos Déco em
Goiânia foi conduzindo por várias instituições e atores sociais, liderados
pelo IPHAN regional, movidos pelo sucesso de um processo anterior,
que culminou na declaração da cidade de Goiás como patrimônio da
Humanidade pela Unesco. Novamente as duas cidades são coladas no
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imaginário e nas ações políticas do Estado Brasileiro. Se antes Goiânia
nasce como um ato de rompimento da Cidade de Goiás (1933), agora
(une-se) nutre-se da experiência bem sucedida do processo do
tombamento de Goiás para reivindicar e ver também bem sucedido a
nomeação de um status patrimonial em âmbito nacional (2002). É
como se os vetores do tempo se unissem novamente pela categoria
excepcionalidade: uma pelo casario colonial, outra pelos seus
componentes Art Déco.1
O processo do tombamento de Goiânia colocou em pauta o
patrimônio cultural da cidade e indagações sobre os significados desse
tombamento nas representações sociais que os pioneiros e habitantes
da cidade tinham sobre ela. Embora seja uma cidade relativamente
nova (73 anos) a questão do “centro histórico” assim como toda a
cidade, tem sido objeto de quatro planos urbanos que defendiam
estratégias, instituíam concursos públicos de requalificação do núcleo
histórico e de fachadas dos prédios, além de demandas de associações
junto à prefeitura. Atualmente, um quinto plano tramita na Câmara
Municipal (Silva, 2006).
O processo de tombamento também institui uma “memória
oficial”, e Goiânia se “torna” colecionada, classificada, indexada, padronizada,
enfim, musealizada. Se o processo de tombamento do
conjunto de vinte e dois elementos e prédios públicos considerados
representativos do estilo Art Déco coloca a cidade positivamente no
cenário nacional e internacional, pode, por outro lado, induzir A um
processo identitário redutor.
Se o processo de tombamento pode ser visto como uma ação
naturalizada do IPHAN, numa esteira de tradição do órgão, desde os
tempos de Rodrigo Mello Franco, amparada por um direito positivista
de nossa legislação, as pesquisas, tanto do ponto de vista da arquitetura
quanto da antropologia, apontam, inequivocadamente, para o
fato de que a Art Déco está longe de ser uma expressão de penetração
no imaginário da cidade. Ela deve se compreendida apenas como uma
ação legitima e normativa do IPHAN aos aspectos inerentes ao processo
de tombamento, proteção e divulgação e até mesmo de valorização de
uma, entre várias formas arquitetônicas, que registrou uma concepção
de morar, representar idéias e transmitir valores. E assim, o Art Déco
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Goiânia: uma cidade patrimonial?
não pode ser utilizado como um ícone totalizador da identidade da
cidade.
Se o Art Deco é uma das formas arquitetônicas da cidade que
remete a um tempo social e político, notadamente da política de Vargas,
quais são as outras formas temporais e sociais que poderiam desenhar
o mosaico de formas e tempos sociais de Goiânia ?
A Rua 20 como Rito de Passagem
Podemos pensar que na perspectiva da literatura nacional e regional,
os grandes espaços do cerrado do estado de Goiás na década de
1930 e 1940 se identificam com uma categoria do pensamento social
brasileiro denominada de sertão. Grandes espaços, gado a esmo, natureza
indomável, casebres, atraso, isolamento. Nesse sentido, podemos
pensar que o movimento de deslocamento da capital do Estado da cidade
de Goiás para as proximidades de Campinas (hoje um bairro de Goiânia)
é um deslocamento no “sertão” na perspectiva que Vidal e Souza (1997)
denominou de “crescer para dentro” na esteira da construção de uma
nacionalidade colocada em prática pelos que marcharam para o oeste,
como analisei em outro trabalho entre os pioneiros da Marcha para o
Oeste (Lima Filho, 2001). Assim, nas próprias narrativas dos primeiros
habitantes de Goiânia, o cenário era de sertão, um mundo mágico: a
paisagem, as impressões e representações da natureza a ser domesticada,
matas, bichos, forças incontroláveis da natureza, vastidão, vazio como
nos mostra Da. Armênia:
Não havia água, nem energia elétrica ainda. (...) Para preparar as refeições
de nossa filha, usávamos uma pequena fogueira, do lado de fora do prédio.
Não se encontrava um fogareiro. (...) até vir de Goiás um fogareiro de
álcool. Na época, convivíamos em Goiânia com pequenos animais que
viviam na periferia das matas, como coelhos, iaras, gatos do mato, (...)
sagüis, tatus etc. Naquele mundo mágico, o vigia noturno do Grande
Hotel caçava coelho e tatu-galinha (...) Aranhas caranguejeiras entravam
livremente pelas portas de fora (...) A tempestades de Goiânia (...) eram
realmente impressionantes! Na vasta campina aberta, ainda quase vazia
o vento campeava solto, adquirindo uma força e velocidade incontroláveis
(...) Caiam raios em todas as direções (...) com a força que adquiria
começava a levantar folhas, papéis, galhos secos e por fim já era uma
ameaça terrível para as pessoas (...) ai de quem cruzasse sua rota; era
arrastado, rodopiado (...) lançado de encontro aos muros ou cercas de
arame farpado. A população temia-os (...) Misto de cidade e sertão (Souza,
1989: 25-28 e 51).
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Foto 02: Rua
20. Antônio Pereira
da Silva. Déc. 1940.
Goiânia. Acervo
MIS-GO.
Este ambiente narrado como sertão era um estado “cru”, pensado
por Lévi Strauss. A instalação da “civilização” era o inicio do processo
do “cozimento” da transformação da natureza para a cultura.
Contudo, numa perspectiva etnográfica, os primeiros habitantes de
Goiânia não eram sertanejos. Eram pessoas, provenientes do interior de
Goiás e de Minas Gerais, principalmente. A primeira leva de moradores
da antiga capital, funcionários públicos, professores, administradores,
profissionais liberais e, de modo expressivo, operários que vieram para a
construção dos prédios públicos, notadamente em estilo Art Déco.
Juntamente com o conjunto desses edifícios públicos, que mais tarde
seriam tombados pelo IPHAN, o governo construiu uma série de casas
padrão onde funcionou o palácio do governo estadual, a faculdade de
Direito, o conservatório de música e como residências para os funcionários
que chegavam da antiga capital. Mais tarde, essas casas foram vendidas,
como registrou Monteiro (1938: 151):
Os primeiros prédios concluídos foram os dez destinados aos funcionários
e ao Jardim de Infância. Os dez prédios foram construídos na rua 20. Foi
essa a primeira rua de Goiânia. Nela foram instalados provisoriamente o
Palácio, a Secretaria Geral, o Escritório Central de Obras e a Diretoria
Geral da Fazenda, que por ser muito grande, teve que ocupar duas casas,
sendo uma para Seção de Terras. Uma das novas casas foi destinada à
residência do governador Dr. Pedro Ludovico Teixeira. Outra serviu de
residência ao Dr. Câmara Filho, direto do Departamento de Propaganda
e Expansão Econômica (...) Numa, foi residir o Dr. Sólon de Almeida
Superintendente do Departamento de Propaganda e venda de lotes.
Noutra residiu o Dr. Germano o Roriz até fins de 1935 quando (...) passou
[para]o Diretor Geral e Segurança Publicas Dr. João Monteiro. (Monteiro,
1938:151)
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Mas enquanto essas casas estavam sendo construídas, naquela
que seria considerada oficialmente a primeira rua de Goiânia, denominada
RUA 20, os primeiros habitantes, de fato, fizeram suas casas
de pau a pique e palha às margens do córrego Botafogo, fonte de água
potável. Ai foi instalada a pensão da Dona Maruca, onde todos se
encontravam. Nas margens do mesmo córrego, banheiros públicos
foram construídos e o lugar era fonte de água potável. Nesse primeiro
momento de ocupação havia, portanto, uma identificação com o mundo
rural, muito próximo da visão de mundo dos lugares de onde vieram:
pequenos animais silvestres, árvores frutíferas do cerrado, peixes,
banhos de córrego, noites estreladas enfim uma paisagem bucólica
embora “selvagem”.
Não havia água encanada. Então, as casas foram feitas com fundo, o
quintal, digamos assim, a terminação do quintal passava no córrego
Botafogo. Ai fizeram dois banheiros, forçaram... eles construíram uma
qued´água que tinha o banheiro das mulheres e depois mais para cima
dos homens (Entrevista com Da. Nize de Freitas 19/09/2006)
Foto 03: Rua 20. Eduardo Bilemjian. Déc. 1930. Goiânia. Acervo MIS-GO.
A Rua 20, em construção, foi traçada de forma paralela ao córrego
Botafogo. Entre a Rua 20 e o Córrego Botafogo se formou mais
espontaneamente a Rua 24, caracterizada por residências, embora essa
rua tenha sido marcada pelo lugar, sob uma Moreira, escolhido por
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Pedro Ludovico para assinar seus primeiros atos administrativos na
capital. Apenas mais tarde, passou a administrar do “palacinho” da
Rua 20. A importância dessa árvore no imaginário dos depoentes, lhe
dá um lugar de destaque nas memórias dos primeiros dias da nova
cidade como é o caso da Dona Virginia Pereira Mendes que em suas
reminiscências conversa com a velha árvore:
Tenho muita recordação de tudo que passou. Tenho a impressão que
você deve estar pertinho dos 80 ou 90 anos de existência. Deus te
abençoes pelo que tivesses, pois quantos anos faz que debaixo de suas
sombras durante o dia e a noite o repouso de um sono tranqüilo. Todos
que te procuram foram recebidos com muita bondade e carinho. Que
lindo destino foi o seu minha bela Gameleira [Moreira]. No dia que
você nasceu, talvez estivesse imaginado que ira ficar bem solitária, bem
sozinha, nesse imenso planalto. Mas o seu destino já estava reservado,
você teria que dar acolhida para todas aquelas famílias que estavam
migrando para essa bela capital. Assim, passaram muitos por debaixo
de sua sombra. (Virgínia Pereira Mendes, (01/11/2005).
Desta maneira, podemos dizer que a Rua 20 era um primeiro
ponto oficial, após todos passarem pelas sombras da velha Amoreira
bem próxima do Córrego Botafogo. O primeiro rito. Era, pois, um tipo
de batismo para quem viesse morar na nova capital. Depois havia o
rito oficial mesmo, de se abrigar na casas da Rua 20. Era uma rua
transitória, mas necessária. Nela, estavam concentrados valores
considerados importantes: a igreja (na Rua 20 morava o Bispo) e ao
lado foi construída a catedral de Goiânia, o Palácio do Governo, a
faculdade de Direito e Conservatório de Música, o Jardim de Infância
entre outros. Portanto, morar na rua 20 era morar perto do poder e do
prestígio. Entretanto, à medida em que a cidade crescia, aos poucos
essa função de liminaridade foi se perdendo. Com a construção do
Setor Sul, durante muitos anos considerado o setor nobre da cidade,
alguns moradores de maior poder aquisitivo construiriam suas casas
nele. Os funcionários e servidores foram também se distribuindo por
outros bairros da cidade, como o Bairro Popular, o Setor dos
Funcionários, o Setor Fama. Alguns moradores, como o advogado e
ex-professor do curso de Direto, Pereira Zeka, permaneceram na mesma
casa construída na década de 40, que seu sogro comprara do Estado.
Os mais pobres continuaram às margens do Córrego Botafogo, e até
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Goiânia: uma cidade patrimonial?
tarde seria uma grande favela, e depois se transformar no Setor
Universitário, onde hoje se encontram as primeiras edificações das
Universidades Federal e Católica de Goiás.
Observa-se, dessa maneira, que a cidade nasceu elitizada, na divisão
de seus espaços urbanos para além de qualquer boa intenção de
seus urbanistas e planejadores. Analisando as narrativas dos pioneiros,
categoria ampla, mas com quem identificamos a primeira e segunda
geração que viram a cidade nascer e crescer, moradores das primeiras
ruas e bairros ou mesmo filhos de políticos e funcionários de alto escalão
na época, têm-se a convergência de dados de que a cidade era dividida
em três áreas: 1) O manto de Nossa Senhora composto pelas avenidas
Araguaia, Tocantins e Paranaíba e Praça Cívica. As margens do Córrego
Botafogo e por último a região Norte depois da Estrada de Ferro e da
Avenida Paranaíba que era asfaltada. Pelo mapa tem-se uma noção desses
espaços. Divisão que fica clara no depoimento da filha do primeiro
prefeito Venerando de Freitas Borges, que nasceu na cidade antes mesmo
de seu batismo cultural em 1942.
Nos anos Dourados, nos anos 50 nós dizíamos assim: Goiânia
esta dividida, da Av. Paranaíba para cima, que o Palácio, era a nata da
sociedade que morava, da Av. Paranaíba, era a classe média baixa.
Então, as pessoas tinham essa rivalidade. Então você queria falar alguma
coisa assim, negativa de alguém, Ah fulano é... não é do lado
Sul. Ela mora além da Avenida Paranaíba. A Avenida Paranaíba era
um divisor, um divisor entre as classe sociais e até hoje isso existe.
Você mora onde? Ah no bairro do buraco? Sempre existiu. E Botafogo,
ali eram invasores, eram lavradores, empregadas domesticas.... ( Nize
de Freitas, 19/09/2006).
Reflexões patrimoniais na perspectiva antropológica
Quando se olha a questão patrimonial pela perspectiva antropológica,
percebemos algumas caminhos que desenham uma tensão com
relação ao tema da preservação, portanto do tombamento, do conceito
antropológico de identidade e do próprio processo inerente a
constituição e mobilidade das formas urbanas e seu dinâmico processo.
Poderíamos também associar com a idéia da Teoria do Conflito de
George Simmel nas diferentes formas de viver o urbano.2
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A experiência de uma antropologia na cidade de Goiânia (Lima
Filho, 2004) provocou um jogo de espelhos desses conceitos e das
narrativas relacionadas a eles, seja pelos entrevistados, seja pelos representantes
de políticas públicas, seja pelo próprio discurso antropológico.
Num primeiro momento, fica claro que a representatividade do
conjunto de Are Déco, como representante de um tempo áureo do início
da cidade, não tem correspondência direta com as narrativas do mesmo
período em que tais prédios públicos foram construídos. Típicamente
frutos de uma ação governista da Era Vargas, eles representam um
estilo arquitetônico em voga no período da década de 30, 40 e já tardio
como no caso da estação ferroviária da cidade nos anos 50. Estilo tão
diferente do olhar dos goianos que a filha do primeiro prefeito, Nize
de Freitas, perguntou ao pai o por quê daquela forma engraçada do
Cine Teatro Goiânia, ao que ele respondeu “Observa bem minha filha,
o teatro Goiânia é uma galera, observa bem que o formato dele é de
uma galera” e Dona Nize arremata: “ou seja, ele foi inspirado numa
galera egípcia”. Uma galera egípcia em pleno Planalto Central!
Considerado excepcional pelo IPHAN, o Teatro de Goaânia
ganhou o status de proteção federal. Goiânia entrou, assim, em 2001,
no seleto circulo de bens patrimoniais tombados pela União, fazendo
Foto 4 – Mapa de Goiânia (1937) por Attílio Corrêa Lima
Fonte: DAHER (2003).
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Goiânia: uma cidade patrimonial?
jus à atuação do órgão federal que foi instituído pela mesma lei que
criou o tombamento. Como já analisei, Goiânia se equivale à cidade
de Goiás nessa ciranda patrimonial do tempo.
As tensões que resistem como consequência disso, do ponto de
vista antropológico são, basicamente, duas. Primeiro, o estilo, como já
afirmou Metran (2006), não tem permeabilidade na concepção de
morar da população goianiense. Nem mesmo as “casas tipo” do inicio
da cidade, construídas pelo governo estadual, têm a Art Déco como
preponderante. Notam-se elementos desse estilo em algumas casas e
sobrados. Registra-se aqui a resistência cultural por detrás do discurso
e da práxis ideológica e de modernização de Pedro Ludovico e sua
equipe. Como vimos, a mudança provocou um movimento de
resistência na cidade de Goiás. Vencidos pelas mãos fortes de Getúlio
Vargas e de Pedro Ludovico, os vilaboenses quase se transfiguram na
constituição de futuros goianienses. Como que numa atitude tácita,
os descendentes dessa geração mães elegem, ao longo do desenvolvimento
da cidade, o estilo neocolonial como preferido. O estilo é
inspirado no passado e se caracteriza por largos beirais de madeiramento
aparente, recortados, frontões curvos como das igrejas
oitocentistas, vergas de arcos entre outros elementos. Em outras
palavras, os goianienses se rendem ao novo, porém não “abrem mão”
do velho. É só passear pela cidade. Portanto, aqui reside o contraponto.
O que se tombou foi o que o governo elegeu, no passado e no presente,
e não as pessoas, as famílias, as memórias. Disso decorre a questão:
não seria o neocolonial alvo de atenção de tombamento federal,
amparado pela legitimidade de seus moradores? A resposta parece ser
não, do ponto de vista da lei do tombamento, uma vez, contaminada
pelo hibridismo de formas, o neocolonial de Goiânia se distancia muito
do ideal de excepcionalidade. Para isso, o Colonial de Goiás já foi
tombado, poderiam alegar alguns. Contudo, do ponto de vista
antropológico, a negação é constrangedora, pois revela uma distancia
entre aquilo que é concebido como referências culturais e aquilo que é
eleito pelo Estado. Afinal, as culturas não são dinâmicas e híbridas
como quer Barth (1968) e Canclini (2003)? Ou ainda como questiona
Eckert (2002: 78).
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“Quem são os guardiões da memória celebrada pelo Estado e divulgada
pelos meios de comunicação de massa ? E quem são os herdeiros dessa
memória ? Estaremos, hoje conformados à memória seletiva de um
discurso oficial ou, estamos ao contrário (...) atentos aos fatores
aglutinantes apreendidos num processo de emancipação do sujeito e
coletivização do conhecimento histórico” ?
O jurista Frederico Marés esclarece que qualquer cidadão ao ver
suas referências culturais ameaçadas, mesmo que coletivas, pode entrar
com pedido de tombamento na justiça (Mares, 1986:23).
Daí formula-se a questão inevitável e provocadora: afinal, para
que serve o tombamento? Ouro Preto foi conservada porque foi tombada
ou porque foi esquecida no tempo, conservando um passado
(Gonçalves, 2001) que só mais tarde seria resgatado como ícone
patrimonial dos tempos modernos? Esse mal-estar na cultura, ou em
nossos arquétipos patrimoniais, para lembrarmos de Freud ou Jung,
talvez possa ser amenizado com a compensação do registro imaterial,
que, aliás, também resvala na armadilha fácil do excepcional. Assim,
podemos concluir que, do ponto de vista conceitual, tanto o
Tombamento quanto o Registro Imaterial são males patrimoniais
necessários, mas insolúveis na dinâmica das culturas.
A segunda questão conceitual que se coloca está diretamente relacionada
à idéia da preservação, tão cara na trajetória brasileira de
construção de uma identidade nacional, de nossas políticas patrimoniais
e que se impregna em nós como se o apego ao passado fosse uma
remissão pelo peso incômodo do atraso, da pobreza, do sertão, da
fatalidade histórica tão retoricamente ensaiada pelo nossos pensadores
da passagem do século XIX e inicio do século XX e tão obsessivamente
colocada em marcha por nossos estadistas e governos. Assim, faz sentido
o que Eckert e Rocha chamam de cidade-ruína que “é a expressão do
conjunto de intenções e de comportamento do homem brasileiro diante
do tempo” (...) “os habitantes valorizam o presente reformulando o
passado” (Eckert e Rocha, 2005: 24).
Nesse vai-e-vem temporal, o movimento que impulsiona para a
modernidade, rompe com o passado, destrói os patrimônios, tornam
inóspitas as relações sociais, individualiza o que foi marcadamente holista
por excelência. A volta ao passado parece querer ressemantizar e fazer
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Goiânia: uma cidade patrimonial?
marcar o passado no presente: é preciso proteger, contaminar-se de um
passado que nós mesmos destruímos, daí a busca por objetos, coleções,
ruínas. Talvez daí se compreenda uma ambigüidade nas narrativas
patrimoniais do homem urbano, como elucida a voz de um dos pioneiros
entrevistados, que nos disse que mudou radicalmente a parte frontal de
sua casa da Rua 20, uma das primeiras de Goiânia, devido à noticia que
correu de que o Estado iria tombar sua casa, “fiz um pecado patrimonial”
nas palavras dele. No entanto, a parte interna continua intacta. Mas
seu filho adiantou e sentenciou “tem que mudar mesmo, professor, faz
parte da modernização”. Portanto, a contraposição de uma proteção por
proteção sem convencimento ou algo que valha ou que faça sentido é
pura fumaça de retóricas para amenizar nossas sangrias patrimoniais e,
diria, existenciais. Como pensou Lefebvre (2004: 112) o fenômeno
urbano é ao mesmo tempo simultâneo e cumulativo. Simultâneo porque
é ponto de convergências dispares, memórias cruzadas, camadas do
passado, como num corte estratigráfico revela a erosão do tempo,
marcando a ausência, mas ao mesmo tempo demarcando o que ficou.
Cumulativo, pois demonstra vários conteúdos, culturas, técnicas, estilos,
formas urbanas, eu acrescentaria. Daí a coexistência, em uma mesma
casa o quase sentimento de culpa do morador já idoso e o rompimento
o filho, de outra geração, mas que sabe de cór o nome de todos os
vizinhos pioneiros e que demonstrou “controle de impressões” nesse
vis à vis com o antropólogo, numa situação de campo.
Entendo assim que a proteção ou a destruição fazem parte de um
jogo de poder, de controle de impressões e retóricas e de constituição
de personas políticas físicas ou jurídicas. É por isso que na Rua 20 se
encontram fragmentos de um passado representado pelos casarões
como a Casa de Colemar Natal e Silva, Pereira Zeka, a casa eclética dos
Sabino, a casa estilo normando de Helio Naves e aqui e acolá os brisessoleil
e traços retos das casas modernistas. Além disso, tem-se os
edifícios que colocaram abaixo a antiga Cúria e a Casa do Bispo, o
Palacinho de Pedro Ludovico e tantas outras. A Rua 20 é por excelência,
a metamorfose da cidade. Daí sua fisionomia tão distante de qualquer
intenção de tombamento federal ou de qualquer atitude patrimonial
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dos poderes estadual (que se restringiu a tombar uma casa tipo) e
municipal. O passado agoniza nos estacionamentos da cidade, que
quase tem um carro por cidadão habilitado. E assim, para lembrarmos
Sahlins, poderia dizer que o tombamento esse mito de origem de pensar
patrimonial brasileiro implode nos eventos históricos da cidade que
se transfigura. Mas como qualquer bom mito, suas estruturas arcaicas
permanecem apesar do roer do tempo, e assim, de vez em quando sua
eficácia tece as narrativas e ações concatenadas. E como não poderia
deixar de ser o rito acontece para reificar o mito. Não foi assim com o
tombamento do Art Déco em Goiânia e suas narrativas?
Notas
1 Sobre as questões históricas, ideológicas e de poder identificando os movimentos
políticos e históricos sobre as cidades de Goiás e Goiânia ver o
meu artigo” O Futuro do Passado da cidade de Goiás: gestão, memória e
identidade” (2003).
2 Ver Ekert (2002).
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ILHA
Revista de Antropologia
Goiânia: uma cidade patrimonial?
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Revista de Antropologia
Goiânia: uma cidade patrimonial?
No Cerrado nasce Goiânia
A decisão de se construir Goiânia, uma nova capital para o
estado de Goiás, era a de que a velha capital, cidade de Goiás,
fundada em 1726, à margens do Rio Vermelho, não mais apresentava
condições geográficas e ambientais para o desenvolvimento
de uma capital de um Estado que tinha como principal meta romper
com a noção de atraso que o imaginário nacional tinha sobre ele.
Aliado a esse fato, registra-se a trama política coordenada pelo
interventor Pedro Ludovico Teixeira, com total apoio do presidente
Getulio Vargas, de enfraquecer o comando tradicional de velhas oligarquias
no Estado, notadamente a dos Caiado, deslocando a capital
de um espaço político e social liderados por alguns de seus representantes.
Nessa primeira onda bachelariana do tempo, Goiânia nasce
assim como ruptura, um vetor da cidade de Goiás. Suas primeiras
formas espaciais são pensadas nas pranchas dos urbanistas e projetistas.
Em 1933, sua pedra fundamental é lançada onde hoje é o poço do
elevador do Palácio das Esmeraldas, residência oficial do governador,
na praça central da cidade indicada por Attílio Correa Lima com um
pedaço de osso de uma ema diante de um cerrado aberto e plano
(Metran, 2006).
Essa ruptura espacial e temporal não foi tão pacífica assim. Houve
resistências, e a cidade de Goiás se dividiu. Mas o fato é que Goiânia
começa a ser construída em 1933. O poder legislativo e o executivo são
transferidos em 1937, e o batismo cultural da cidade aconteceu em
1942 com grande mobilização nacional.
Com os primeiros anos, algumas famílias da cidade de Goiás
mudaram para Goiânia, enquanto outras permanecem. E assim, separam-
se ritmos entre as cidades: Goiás se volta para continuar suas
formas de sociabilidade nascidas de uma passado colonial, com suas
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Revista de Antropologia
Manuel Ferreira Lima Filho
festas religiosas, seus alfenins, suas igrejas, seus artistas, sua elite,
álem de sua periferia profundamente identificadas com símbolos do
mundo rural. Não pára no tempo, mas segue seu próprio ritmo,
historicidades, sociabilidades e referências culturais e identitárias.
Goiânia, por sua vez, busca a velocidade da modernização, de cumprir
sua meta de metrópole no Planalto Central do Brasil, como um ensaio
experimental para a construção de Brasília anos depois, e, ao mesmo
tempo, inspirada na experiência de Belo Horizonte no final do século
XIX.
Foto 01: Praça do Coreto na cidade de Goiás, no ínicio do século XX
Fonte: Craveiro (1994)
O Plano urbanístico da nova cidade, concebido por Attílio Correa
Lima, de influência francesa, explorou a topografia do sítio, pois o
traçado proposto para o núcleo pioneiro de Goiânia favorecia a drenagem
por topografia, integrando as microbacias hidrográficas. Ele
procurou privilegiar o sistema viário com avenidas largas, sistemas de
estacionamento, beneficiando assim o comércio. Utilizou-se, então de
uma malha ortogonal. Para a zona industrial, nas imediações da estrada
de ferro concebeu desvios e uma estação de triagem. Para a zona
residencial o plano previa uma área tranqüila, distante do movimento
do centro. Reservou, em seus planos, grandes áreas verdes que visavam
a salubridade e a beleza. O plano por ele elaborado criava os setores
central, norte, sul, oeste e leste com delimitação espacial bem definida.
Com mão de obra recrutada do interior de Goiás e de outras regiões do
país construiu-se assim Goiânia. (Machado et al, 2003 e Silva, 2006).
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Goiânia: uma cidade patrimonial?
Mais tarde, outro urbanista, Armando de Godoy, de influência inglesa,
continua a projetar os primeiros traços da nova capital inspirado na
cidade jardim inglesa.
Podemos observar na tabela abaixo o crescimento demográfico
da cidade entre as décadas de 1940 a 1980:
1940 19.000 habitantes
1950 53.000 habitantes
1960 150.000 habitantes
1980 700.000 habitantes
1998 1 milhão
2006 (estimativa em julho) 1.220,412 habitantes
Dados Populacionais da Cidade de Goiânia (1940-2006)
Fonte: IBGE (2007)
Projetada para ter 50.000 habitantes, a população de Goiânia
cresceu rapidamente, unindo-se a Campinas, que dela estava separada
por 6 km. Campinas tornou-se um bairro de Goiânia, como muitos
outros que foram surgindo (Machado et al, 2003).
Tornando-se “Patrimônio”
No ano de 2002, Goiânia é alvo de um processo de tombamento
Federal de seu Núcleo Pioneiro juntamente com edifícios públicos e
componentes Art Decó (IPHAN, 2002). O Estilo Art Déco foi lançando
oficialmente em 1925, em Paris. A arquitetura é marcada por volumetria
geométrica, simétrica e imponente, com ornamentação e, portanto,
muitos elementos decorativos. No Brasil, foi amplamente difundido no
período do Estado Novo, tendo como exemplo típico a torre do relógio
da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, e quase todas os edifícios dos
Correios espalhados pelo país construídos nessa época. Em Goiânia, o
estilo foi adotado nos principais prédios públicos.
O processo de tombamento do conjunto de elementos Déco em
Goiânia foi conduzindo por várias instituições e atores sociais, liderados
pelo IPHAN regional, movidos pelo sucesso de um processo anterior,
que culminou na declaração da cidade de Goiás como patrimônio da
Humanidade pela Unesco. Novamente as duas cidades são coladas no
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ILHA
Revista de Antropologia
Manuel Ferreira Lima Filho
imaginário e nas ações políticas do Estado Brasileiro. Se antes Goiânia
nasce como um ato de rompimento da Cidade de Goiás (1933), agora
(une-se) nutre-se da experiência bem sucedida do processo do
tombamento de Goiás para reivindicar e ver também bem sucedido a
nomeação de um status patrimonial em âmbito nacional (2002). É
como se os vetores do tempo se unissem novamente pela categoria
excepcionalidade: uma pelo casario colonial, outra pelos seus
componentes Art Déco.1
O processo do tombamento de Goiânia colocou em pauta o
patrimônio cultural da cidade e indagações sobre os significados desse
tombamento nas representações sociais que os pioneiros e habitantes
da cidade tinham sobre ela. Embora seja uma cidade relativamente
nova (73 anos) a questão do “centro histórico” assim como toda a
cidade, tem sido objeto de quatro planos urbanos que defendiam
estratégias, instituíam concursos públicos de requalificação do núcleo
histórico e de fachadas dos prédios, além de demandas de associações
junto à prefeitura. Atualmente, um quinto plano tramita na Câmara
Municipal (Silva, 2006).
O processo de tombamento também institui uma “memória
oficial”, e Goiânia se “torna” colecionada, classificada, indexada, padronizada,
enfim, musealizada. Se o processo de tombamento do
conjunto de vinte e dois elementos e prédios públicos considerados
representativos do estilo Art Déco coloca a cidade positivamente no
cenário nacional e internacional, pode, por outro lado, induzir A um
processo identitário redutor.
Se o processo de tombamento pode ser visto como uma ação
naturalizada do IPHAN, numa esteira de tradição do órgão, desde os
tempos de Rodrigo Mello Franco, amparada por um direito positivista
de nossa legislação, as pesquisas, tanto do ponto de vista da arquitetura
quanto da antropologia, apontam, inequivocadamente, para o
fato de que a Art Déco está longe de ser uma expressão de penetração
no imaginário da cidade. Ela deve se compreendida apenas como uma
ação legitima e normativa do IPHAN aos aspectos inerentes ao processo
de tombamento, proteção e divulgação e até mesmo de valorização de
uma, entre várias formas arquitetônicas, que registrou uma concepção
de morar, representar idéias e transmitir valores. E assim, o Art Déco
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Goiânia: uma cidade patrimonial?
não pode ser utilizado como um ícone totalizador da identidade da
cidade.
Se o Art Deco é uma das formas arquitetônicas da cidade que
remete a um tempo social e político, notadamente da política de Vargas,
quais são as outras formas temporais e sociais que poderiam desenhar
o mosaico de formas e tempos sociais de Goiânia ?
A Rua 20 como Rito de Passagem
Podemos pensar que na perspectiva da literatura nacional e regional,
os grandes espaços do cerrado do estado de Goiás na década de
1930 e 1940 se identificam com uma categoria do pensamento social
brasileiro denominada de sertão. Grandes espaços, gado a esmo, natureza
indomável, casebres, atraso, isolamento. Nesse sentido, podemos
pensar que o movimento de deslocamento da capital do Estado da cidade
de Goiás para as proximidades de Campinas (hoje um bairro de Goiânia)
é um deslocamento no “sertão” na perspectiva que Vidal e Souza (1997)
denominou de “crescer para dentro” na esteira da construção de uma
nacionalidade colocada em prática pelos que marcharam para o oeste,
como analisei em outro trabalho entre os pioneiros da Marcha para o
Oeste (Lima Filho, 2001). Assim, nas próprias narrativas dos primeiros
habitantes de Goiânia, o cenário era de sertão, um mundo mágico: a
paisagem, as impressões e representações da natureza a ser domesticada,
matas, bichos, forças incontroláveis da natureza, vastidão, vazio como
nos mostra Da. Armênia:
Não havia água, nem energia elétrica ainda. (...) Para preparar as refeições
de nossa filha, usávamos uma pequena fogueira, do lado de fora do prédio.
Não se encontrava um fogareiro. (...) até vir de Goiás um fogareiro de
álcool. Na época, convivíamos em Goiânia com pequenos animais que
viviam na periferia das matas, como coelhos, iaras, gatos do mato, (...)
sagüis, tatus etc. Naquele mundo mágico, o vigia noturno do Grande
Hotel caçava coelho e tatu-galinha (...) Aranhas caranguejeiras entravam
livremente pelas portas de fora (...) A tempestades de Goiânia (...) eram
realmente impressionantes! Na vasta campina aberta, ainda quase vazia
o vento campeava solto, adquirindo uma força e velocidade incontroláveis
(...) Caiam raios em todas as direções (...) com a força que adquiria
começava a levantar folhas, papéis, galhos secos e por fim já era uma
ameaça terrível para as pessoas (...) ai de quem cruzasse sua rota; era
arrastado, rodopiado (...) lançado de encontro aos muros ou cercas de
arame farpado. A população temia-os (...) Misto de cidade e sertão (Souza,
1989: 25-28 e 51).
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Manuel Ferreira Lima Filho
Foto 02: Rua
20. Antônio Pereira
da Silva. Déc. 1940.
Goiânia. Acervo
MIS-GO.
Este ambiente narrado como sertão era um estado “cru”, pensado
por Lévi Strauss. A instalação da “civilização” era o inicio do processo
do “cozimento” da transformação da natureza para a cultura.
Contudo, numa perspectiva etnográfica, os primeiros habitantes de
Goiânia não eram sertanejos. Eram pessoas, provenientes do interior de
Goiás e de Minas Gerais, principalmente. A primeira leva de moradores
da antiga capital, funcionários públicos, professores, administradores,
profissionais liberais e, de modo expressivo, operários que vieram para a
construção dos prédios públicos, notadamente em estilo Art Déco.
Juntamente com o conjunto desses edifícios públicos, que mais tarde
seriam tombados pelo IPHAN, o governo construiu uma série de casas
padrão onde funcionou o palácio do governo estadual, a faculdade de
Direito, o conservatório de música e como residências para os funcionários
que chegavam da antiga capital. Mais tarde, essas casas foram vendidas,
como registrou Monteiro (1938: 151):
Os primeiros prédios concluídos foram os dez destinados aos funcionários
e ao Jardim de Infância. Os dez prédios foram construídos na rua 20. Foi
essa a primeira rua de Goiânia. Nela foram instalados provisoriamente o
Palácio, a Secretaria Geral, o Escritório Central de Obras e a Diretoria
Geral da Fazenda, que por ser muito grande, teve que ocupar duas casas,
sendo uma para Seção de Terras. Uma das novas casas foi destinada à
residência do governador Dr. Pedro Ludovico Teixeira. Outra serviu de
residência ao Dr. Câmara Filho, direto do Departamento de Propaganda
e Expansão Econômica (...) Numa, foi residir o Dr. Sólon de Almeida
Superintendente do Departamento de Propaganda e venda de lotes.
Noutra residiu o Dr. Germano o Roriz até fins de 1935 quando (...) passou
[para]o Diretor Geral e Segurança Publicas Dr. João Monteiro. (Monteiro,
1938:151)
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Goiânia: uma cidade patrimonial?
Mas enquanto essas casas estavam sendo construídas, naquela
que seria considerada oficialmente a primeira rua de Goiânia, denominada
RUA 20, os primeiros habitantes, de fato, fizeram suas casas
de pau a pique e palha às margens do córrego Botafogo, fonte de água
potável. Ai foi instalada a pensão da Dona Maruca, onde todos se
encontravam. Nas margens do mesmo córrego, banheiros públicos
foram construídos e o lugar era fonte de água potável. Nesse primeiro
momento de ocupação havia, portanto, uma identificação com o mundo
rural, muito próximo da visão de mundo dos lugares de onde vieram:
pequenos animais silvestres, árvores frutíferas do cerrado, peixes,
banhos de córrego, noites estreladas enfim uma paisagem bucólica
embora “selvagem”.
Não havia água encanada. Então, as casas foram feitas com fundo, o
quintal, digamos assim, a terminação do quintal passava no córrego
Botafogo. Ai fizeram dois banheiros, forçaram... eles construíram uma
qued´água que tinha o banheiro das mulheres e depois mais para cima
dos homens (Entrevista com Da. Nize de Freitas 19/09/2006)
Foto 03: Rua 20. Eduardo Bilemjian. Déc. 1930. Goiânia. Acervo MIS-GO.
A Rua 20, em construção, foi traçada de forma paralela ao córrego
Botafogo. Entre a Rua 20 e o Córrego Botafogo se formou mais
espontaneamente a Rua 24, caracterizada por residências, embora essa
rua tenha sido marcada pelo lugar, sob uma Moreira, escolhido por
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Revista de Antropologia
Manuel Ferreira Lima Filho
Pedro Ludovico para assinar seus primeiros atos administrativos na
capital. Apenas mais tarde, passou a administrar do “palacinho” da
Rua 20. A importância dessa árvore no imaginário dos depoentes, lhe
dá um lugar de destaque nas memórias dos primeiros dias da nova
cidade como é o caso da Dona Virginia Pereira Mendes que em suas
reminiscências conversa com a velha árvore:
Tenho muita recordação de tudo que passou. Tenho a impressão que
você deve estar pertinho dos 80 ou 90 anos de existência. Deus te
abençoes pelo que tivesses, pois quantos anos faz que debaixo de suas
sombras durante o dia e a noite o repouso de um sono tranqüilo. Todos
que te procuram foram recebidos com muita bondade e carinho. Que
lindo destino foi o seu minha bela Gameleira [Moreira]. No dia que
você nasceu, talvez estivesse imaginado que ira ficar bem solitária, bem
sozinha, nesse imenso planalto. Mas o seu destino já estava reservado,
você teria que dar acolhida para todas aquelas famílias que estavam
migrando para essa bela capital. Assim, passaram muitos por debaixo
de sua sombra. (Virgínia Pereira Mendes, (01/11/2005).
Desta maneira, podemos dizer que a Rua 20 era um primeiro
ponto oficial, após todos passarem pelas sombras da velha Amoreira
bem próxima do Córrego Botafogo. O primeiro rito. Era, pois, um tipo
de batismo para quem viesse morar na nova capital. Depois havia o
rito oficial mesmo, de se abrigar na casas da Rua 20. Era uma rua
transitória, mas necessária. Nela, estavam concentrados valores
considerados importantes: a igreja (na Rua 20 morava o Bispo) e ao
lado foi construída a catedral de Goiânia, o Palácio do Governo, a
faculdade de Direito e Conservatório de Música, o Jardim de Infância
entre outros. Portanto, morar na rua 20 era morar perto do poder e do
prestígio. Entretanto, à medida em que a cidade crescia, aos poucos
essa função de liminaridade foi se perdendo. Com a construção do
Setor Sul, durante muitos anos considerado o setor nobre da cidade,
alguns moradores de maior poder aquisitivo construiriam suas casas
nele. Os funcionários e servidores foram também se distribuindo por
outros bairros da cidade, como o Bairro Popular, o Setor dos
Funcionários, o Setor Fama. Alguns moradores, como o advogado e
ex-professor do curso de Direto, Pereira Zeka, permaneceram na mesma
casa construída na década de 40, que seu sogro comprara do Estado.
Os mais pobres continuaram às margens do Córrego Botafogo, e até
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Revista de Antropologia
Goiânia: uma cidade patrimonial?
tarde seria uma grande favela, e depois se transformar no Setor
Universitário, onde hoje se encontram as primeiras edificações das
Universidades Federal e Católica de Goiás.
Observa-se, dessa maneira, que a cidade nasceu elitizada, na divisão
de seus espaços urbanos para além de qualquer boa intenção de
seus urbanistas e planejadores. Analisando as narrativas dos pioneiros,
categoria ampla, mas com quem identificamos a primeira e segunda
geração que viram a cidade nascer e crescer, moradores das primeiras
ruas e bairros ou mesmo filhos de políticos e funcionários de alto escalão
na época, têm-se a convergência de dados de que a cidade era dividida
em três áreas: 1) O manto de Nossa Senhora composto pelas avenidas
Araguaia, Tocantins e Paranaíba e Praça Cívica. As margens do Córrego
Botafogo e por último a região Norte depois da Estrada de Ferro e da
Avenida Paranaíba que era asfaltada. Pelo mapa tem-se uma noção desses
espaços. Divisão que fica clara no depoimento da filha do primeiro
prefeito Venerando de Freitas Borges, que nasceu na cidade antes mesmo
de seu batismo cultural em 1942.
Nos anos Dourados, nos anos 50 nós dizíamos assim: Goiânia
esta dividida, da Av. Paranaíba para cima, que o Palácio, era a nata da
sociedade que morava, da Av. Paranaíba, era a classe média baixa.
Então, as pessoas tinham essa rivalidade. Então você queria falar alguma
coisa assim, negativa de alguém, Ah fulano é... não é do lado
Sul. Ela mora além da Avenida Paranaíba. A Avenida Paranaíba era
um divisor, um divisor entre as classe sociais e até hoje isso existe.
Você mora onde? Ah no bairro do buraco? Sempre existiu. E Botafogo,
ali eram invasores, eram lavradores, empregadas domesticas.... ( Nize
de Freitas, 19/09/2006).
Reflexões patrimoniais na perspectiva antropológica
Quando se olha a questão patrimonial pela perspectiva antropológica,
percebemos algumas caminhos que desenham uma tensão com
relação ao tema da preservação, portanto do tombamento, do conceito
antropológico de identidade e do próprio processo inerente a
constituição e mobilidade das formas urbanas e seu dinâmico processo.
Poderíamos também associar com a idéia da Teoria do Conflito de
George Simmel nas diferentes formas de viver o urbano.2
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Revista de Antropologia
Manuel Ferreira Lima Filho
A experiência de uma antropologia na cidade de Goiânia (Lima
Filho, 2004) provocou um jogo de espelhos desses conceitos e das
narrativas relacionadas a eles, seja pelos entrevistados, seja pelos representantes
de políticas públicas, seja pelo próprio discurso antropológico.
Num primeiro momento, fica claro que a representatividade do
conjunto de Are Déco, como representante de um tempo áureo do início
da cidade, não tem correspondência direta com as narrativas do mesmo
período em que tais prédios públicos foram construídos. Típicamente
frutos de uma ação governista da Era Vargas, eles representam um
estilo arquitetônico em voga no período da década de 30, 40 e já tardio
como no caso da estação ferroviária da cidade nos anos 50. Estilo tão
diferente do olhar dos goianos que a filha do primeiro prefeito, Nize
de Freitas, perguntou ao pai o por quê daquela forma engraçada do
Cine Teatro Goiânia, ao que ele respondeu “Observa bem minha filha,
o teatro Goiânia é uma galera, observa bem que o formato dele é de
uma galera” e Dona Nize arremata: “ou seja, ele foi inspirado numa
galera egípcia”. Uma galera egípcia em pleno Planalto Central!
Considerado excepcional pelo IPHAN, o Teatro de Goaânia
ganhou o status de proteção federal. Goiânia entrou, assim, em 2001,
no seleto circulo de bens patrimoniais tombados pela União, fazendo
Foto 4 – Mapa de Goiânia (1937) por Attílio Corrêa Lima
Fonte: DAHER (2003).
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ILHA
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Goiânia: uma cidade patrimonial?
jus à atuação do órgão federal que foi instituído pela mesma lei que
criou o tombamento. Como já analisei, Goiânia se equivale à cidade
de Goiás nessa ciranda patrimonial do tempo.
As tensões que resistem como consequência disso, do ponto de
vista antropológico são, basicamente, duas. Primeiro, o estilo, como já
afirmou Metran (2006), não tem permeabilidade na concepção de
morar da população goianiense. Nem mesmo as “casas tipo” do inicio
da cidade, construídas pelo governo estadual, têm a Art Déco como
preponderante. Notam-se elementos desse estilo em algumas casas e
sobrados. Registra-se aqui a resistência cultural por detrás do discurso
e da práxis ideológica e de modernização de Pedro Ludovico e sua
equipe. Como vimos, a mudança provocou um movimento de
resistência na cidade de Goiás. Vencidos pelas mãos fortes de Getúlio
Vargas e de Pedro Ludovico, os vilaboenses quase se transfiguram na
constituição de futuros goianienses. Como que numa atitude tácita,
os descendentes dessa geração mães elegem, ao longo do desenvolvimento
da cidade, o estilo neocolonial como preferido. O estilo é
inspirado no passado e se caracteriza por largos beirais de madeiramento
aparente, recortados, frontões curvos como das igrejas
oitocentistas, vergas de arcos entre outros elementos. Em outras
palavras, os goianienses se rendem ao novo, porém não “abrem mão”
do velho. É só passear pela cidade. Portanto, aqui reside o contraponto.
O que se tombou foi o que o governo elegeu, no passado e no presente,
e não as pessoas, as famílias, as memórias. Disso decorre a questão:
não seria o neocolonial alvo de atenção de tombamento federal,
amparado pela legitimidade de seus moradores? A resposta parece ser
não, do ponto de vista da lei do tombamento, uma vez, contaminada
pelo hibridismo de formas, o neocolonial de Goiânia se distancia muito
do ideal de excepcionalidade. Para isso, o Colonial de Goiás já foi
tombado, poderiam alegar alguns. Contudo, do ponto de vista
antropológico, a negação é constrangedora, pois revela uma distancia
entre aquilo que é concebido como referências culturais e aquilo que é
eleito pelo Estado. Afinal, as culturas não são dinâmicas e híbridas
como quer Barth (1968) e Canclini (2003)? Ou ainda como questiona
Eckert (2002: 78).
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Revista de Antropologia
Manuel Ferreira Lima Filho
“Quem são os guardiões da memória celebrada pelo Estado e divulgada
pelos meios de comunicação de massa ? E quem são os herdeiros dessa
memória ? Estaremos, hoje conformados à memória seletiva de um
discurso oficial ou, estamos ao contrário (...) atentos aos fatores
aglutinantes apreendidos num processo de emancipação do sujeito e
coletivização do conhecimento histórico” ?
O jurista Frederico Marés esclarece que qualquer cidadão ao ver
suas referências culturais ameaçadas, mesmo que coletivas, pode entrar
com pedido de tombamento na justiça (Mares, 1986:23).
Daí formula-se a questão inevitável e provocadora: afinal, para
que serve o tombamento? Ouro Preto foi conservada porque foi tombada
ou porque foi esquecida no tempo, conservando um passado
(Gonçalves, 2001) que só mais tarde seria resgatado como ícone
patrimonial dos tempos modernos? Esse mal-estar na cultura, ou em
nossos arquétipos patrimoniais, para lembrarmos de Freud ou Jung,
talvez possa ser amenizado com a compensação do registro imaterial,
que, aliás, também resvala na armadilha fácil do excepcional. Assim,
podemos concluir que, do ponto de vista conceitual, tanto o
Tombamento quanto o Registro Imaterial são males patrimoniais
necessários, mas insolúveis na dinâmica das culturas.
A segunda questão conceitual que se coloca está diretamente relacionada
à idéia da preservação, tão cara na trajetória brasileira de
construção de uma identidade nacional, de nossas políticas patrimoniais
e que se impregna em nós como se o apego ao passado fosse uma
remissão pelo peso incômodo do atraso, da pobreza, do sertão, da
fatalidade histórica tão retoricamente ensaiada pelo nossos pensadores
da passagem do século XIX e inicio do século XX e tão obsessivamente
colocada em marcha por nossos estadistas e governos. Assim, faz sentido
o que Eckert e Rocha chamam de cidade-ruína que “é a expressão do
conjunto de intenções e de comportamento do homem brasileiro diante
do tempo” (...) “os habitantes valorizam o presente reformulando o
passado” (Eckert e Rocha, 2005: 24).
Nesse vai-e-vem temporal, o movimento que impulsiona para a
modernidade, rompe com o passado, destrói os patrimônios, tornam
inóspitas as relações sociais, individualiza o que foi marcadamente holista
por excelência. A volta ao passado parece querer ressemantizar e fazer
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ILHA
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Goiânia: uma cidade patrimonial?
marcar o passado no presente: é preciso proteger, contaminar-se de um
passado que nós mesmos destruímos, daí a busca por objetos, coleções,
ruínas. Talvez daí se compreenda uma ambigüidade nas narrativas
patrimoniais do homem urbano, como elucida a voz de um dos pioneiros
entrevistados, que nos disse que mudou radicalmente a parte frontal de
sua casa da Rua 20, uma das primeiras de Goiânia, devido à noticia que
correu de que o Estado iria tombar sua casa, “fiz um pecado patrimonial”
nas palavras dele. No entanto, a parte interna continua intacta. Mas
seu filho adiantou e sentenciou “tem que mudar mesmo, professor, faz
parte da modernização”. Portanto, a contraposição de uma proteção por
proteção sem convencimento ou algo que valha ou que faça sentido é
pura fumaça de retóricas para amenizar nossas sangrias patrimoniais e,
diria, existenciais. Como pensou Lefebvre (2004: 112) o fenômeno
urbano é ao mesmo tempo simultâneo e cumulativo. Simultâneo porque
é ponto de convergências dispares, memórias cruzadas, camadas do
passado, como num corte estratigráfico revela a erosão do tempo,
marcando a ausência, mas ao mesmo tempo demarcando o que ficou.
Cumulativo, pois demonstra vários conteúdos, culturas, técnicas, estilos,
formas urbanas, eu acrescentaria. Daí a coexistência, em uma mesma
casa o quase sentimento de culpa do morador já idoso e o rompimento
o filho, de outra geração, mas que sabe de cór o nome de todos os
vizinhos pioneiros e que demonstrou “controle de impressões” nesse
vis à vis com o antropólogo, numa situação de campo.
Entendo assim que a proteção ou a destruição fazem parte de um
jogo de poder, de controle de impressões e retóricas e de constituição
de personas políticas físicas ou jurídicas. É por isso que na Rua 20 se
encontram fragmentos de um passado representado pelos casarões
como a Casa de Colemar Natal e Silva, Pereira Zeka, a casa eclética dos
Sabino, a casa estilo normando de Helio Naves e aqui e acolá os brisessoleil
e traços retos das casas modernistas. Além disso, tem-se os
edifícios que colocaram abaixo a antiga Cúria e a Casa do Bispo, o
Palacinho de Pedro Ludovico e tantas outras. A Rua 20 é por excelência,
a metamorfose da cidade. Daí sua fisionomia tão distante de qualquer
intenção de tombamento federal ou de qualquer atitude patrimonial
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Revista de Antropologia
Manuel Ferreira Lima Filho
dos poderes estadual (que se restringiu a tombar uma casa tipo) e
municipal. O passado agoniza nos estacionamentos da cidade, que
quase tem um carro por cidadão habilitado. E assim, para lembrarmos
Sahlins, poderia dizer que o tombamento esse mito de origem de pensar
patrimonial brasileiro implode nos eventos históricos da cidade que
se transfigura. Mas como qualquer bom mito, suas estruturas arcaicas
permanecem apesar do roer do tempo, e assim, de vez em quando sua
eficácia tece as narrativas e ações concatenadas. E como não poderia
deixar de ser o rito acontece para reificar o mito. Não foi assim com o
tombamento do Art Déco em Goiânia e suas narrativas?
Notas
1 Sobre as questões históricas, ideológicas e de poder identificando os movimentos
políticos e históricos sobre as cidades de Goiás e Goiânia ver o
meu artigo” O Futuro do Passado da cidade de Goiás: gestão, memória e
identidade” (2003).
2 Ver Ekert (2002).
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