"Essas barreiras de ambições dificultam que nos vejamos como uma nação de grande importância no planeta em termos culturais, sociais, políticos e ambientais. Impede-nos de admirar mais a nossa inventiva cultura mestiça, a nossa vida social inspirada na emotividade, o processo democrático empírico que temos construído e a nossa participação decisiva nas questões de segurança alimentar e das energias renováveis".
sexta-feira, 13 de dezembro de 2013
Os/as alunos/as regularmente matriculados no curso de História da PUC Goiás, podem se inscrever no processo de seleção de bolsistas para o PIBID 2014 (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência). O subprojeto de História, intitulado “Educação e Ensino na História e suas linguagens”, coordenado pelas profªs. Maria Madalena Queiroz e Lázara Alzira de Freitas. O projeto foi contemplado com dez (10) bolsas da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), com possibilidade de renovação para até quatro anos. Os/as interessados podem acessar o edital e demais informações no sítio da PUC Goiás, na aba PIDIB, a partir de janeiro de 2014.
terça-feira, 19 de novembro de 2013
O Peregrino e o Convertido - segundo Hervieu Leger
O
PEREGRINO E O CONVERTIDO
D.Hervieu
Leger – é um dos nomes em destaque sobre a pesquisa do fenômeno religioso na
modernidade, a memória e tradição religiosa.
A
autora faz indagações sobre a desconstrução dos sistemas tradicionais de crença
e singular mobilidade religiosa
contemporânea.
Esta
obra foi publicada em 1999 e trata-se de uma reflexão sobre os processos de construção
e transmissão esclarecendo a dinâmica que anima a continuidade crente no
final do séc.XX, ou seja, o processo de
recomposição do imaginário religioso, num tempo marcado pela crise das
instituições tradicionais e de sua gestão da memória autorizada.
O
inicio do sec.XXI, vem “marcado pela difusão do crer individualista pela
disjunção das crenças e das pertenças confessionais e pela diversificação das
trajetórias percorridas por crentes passeadores.
Por
um lado há a desregulação institucional da religiosidade e do outro lado a
disseminação de novas formas de expressão religiosa de uma religiosidade
flutuante ou de elaborações sincréticas inéditas. O livro divide-se em 6
capitulos.
No
1º- Religião despedaçada, traz uma reflexão sobre a modernidade
religiosa – buscando desenvolver a questão do paradoxo religioso nas sociedades
seculares, em especial a crise de credibilidade dos sistemas religiosos e da emergência
crescente de novas formas de crença.
As
sociedades modernas não podem ser encaixadas numa perspectiva restrita de
secularização, marcada pela idéia da privação social e cultural da religião.
O
que caracteriza o tempo atual não é a mera indiferença com respeito a crença,
mas a perda de sua regulamentação por parte das instituições tradicionais
produtora de sentido.
O
que ocorre é uma “bricolagem de crenças”, uma individualização e liberdade na
dinâmica de construção dos sistemas de fé. “As crenças se disseminam”.
Conformam-se cada vez menos aos modelos estabelecidos. Comandam cada vez menos
as práticas controladas pelas instituições. Torna-se comum a presença de
crentes que se afirmam sem a adesão precisa a uma instituição particular. E
esta proliferação de crenças que marca o cenário contemporâneo acaba por refletir
a necessidade sentida pelos indivíduos de recomporem o universo de sentido que
eles menos sentem escapar de suas mãos numa modernidade intransparente.
O
cap. 2 – Fim das identidades religiosas
herdadas – a autora trabalha como acontece a transmissão das identidades
religiosas entre as gerações em um contexto nebuloso.
Com
base na reflexão de Halbwachs, Hervieu Leger aponta a importância da
transmissão regular das instituições e valores como elemento fundamental para a
continuidade e sobrevivência da sociedade. É no movimento de transição de uma
geração para outra que a religião se firma no tempo. O que acontece na
modernidade é um fenômeno complexo de “crise de transmissão” dessa “menos
autorizada” que é a tradição. As sociedades modernas tendem a ser cada vez
menos sociedade de memória, uma vez governadas pelo paradigma da imediatez.
Essa
perda ou enfraquecimento de identidades herdadas vem acontecendo de forma
crescente no âmbito da transmissão religiosa, os indivíduos constroem sua
própria identidade sócio – religiosa a partir dos diversos recursos simbólicos
colocados à sua disposição.
Tende
a ocorrer uma nova escolha religiosa, com base nos recursos que os indivíduos vão
encontrando pelo caminho ou se engrossa a fila dos que se definem como sem
religião.
O
que caracteriza a religiosidade das sociedades modernas é a dinâmica do
movimento, mobilidade e dispersão de crenças.
nova
dinâmica da mobilidade das pertenças, com a desterritorialização das
comunidades com desregulação dos procedimentos da transmissão religiosa.
Substituindo
o praticante, a modernidade favorece a emergência de 2 novas figuras: o
peregrino e oconvertido.
No
cap. 3 – movimento – Concentrando na
figura do Peregrino – para a autora
esse personagem enquadra-se na especificidade do religioso em movimento, sob qa
influência dos percursos individuais (trajetórias de identificação religiosa e
uma sociabilidade religiosa em plena expansão sob o signo da mobilidade e da
associação temporária.
Seria
uma mobilidade e confessionalidade fluida como a JMJ, tomando por exemplo a
participação de 1997. Uma dinâmica de agregação e dispersão simbólica da
universalidade católica.
Cap.
4 – O Convertido – expressa uma
identidade religiosa no contexto de mobiludade da modernidade e é marcada pela
escolha individual.
Desdobra-se
em 3 modalidades:
1- O
individuo que mudaa de religião.
2- O que se integra a uma tradição de forma
inaugural.
3- O que se re-afilia à mesma tradição religiosa.
Nesses
diversos casos, a conversão é vivida como imersão num “1regime de intensidade
religiosa”.
A
emergência dessa nova figura é a expressão da desregulação institucional da
modernidade, onde a identidade religiosa se firma como uma escolha.
Segundo
a autora, em todas as formas de conversão, cristaliza-se um processo de
individualização, que favorece o caráter que se tornou opcional de
identificação religiosa e o desejo de uma vida reorganizada. Como um protesto
contra a desordem do mundo.
Percebe-se
que a insegurança e o pluralismo, provocam a reativação de identidades
confe3xxionais e o desejo de inserção num regime intensivo de vida religiosa.
Cap.
5 – Comunidades sob o regime de individualismo religioso. Um
claro exemplo vem na “nebulosa mística esotérica”, trata-se de uma
religiosidade centrada no individuo e sua realização pessoal. Essa
individualização compagina-se com o individualismo no campo religioso moderno
ou seja é o “crer sem pertencer”; é um dos traços do tempo atual e
presentifica-se na lógica de uma “bricolagem de fé”.
Há
uma decomposição, sem recomposição ou seja, a afirmação de um regime subjetivo
de verdade que dissolve toda forma de comunalisação religiosa.
Cap.6
– Instituições em crise e laicidade em
pane – A Europa foi considerada em 1946 uma República laica. De lá para cá,
vem havendo matrizes diferenciadas de uma laicização militante e comprometida,
para uma laicidade de mediação.
Os
embates com o Islâ (2ª religião na França) e as seitas vieram exigir um novo
posicionamento da laicização.
Hervieu
Leger vai na linha mediadora e acredita em uma decisiva atuação do estado na
gestão e racionalização do debate em torno da delimitação do exercício de
liberdade religiosa. O diálogo ganha significado especial e busca uma nova
dinâmica entre as religiões.
segunda-feira, 18 de novembro de 2013
O que é religião?
O
QUE É RELIGIÃO?
Segundo
João Luis correia Junior – de Robert Crawford
(tradução de Gentil Avelino Titton), tem havido atualmente um maior
interesse pelas diversas formas com que a religião se manifesta nesta sociedade
plural, em que vivemos, fomentando o respeito e a simpatia para com pessoas que
diferem em crenças.
Portanto
este livro vem dissipar a idéia conflitante entre ciências e religião, além de
refletir sobre 2 sistemas de crenças
influentes: o marxismo e o humanismo,
que apresentam alternativas
àquelas religiões que exigem dedicação e compromisso e oferecem às pessoas
soluções para o sofrimento, a injustiça e a ignorância.
No
1º capitulo Robert Crawford problematiza o título, com a pergunta “é possível
definir religião?” E para responder, são apresentados algumas definições; mas a
questão fica aberta pois segundo Crawford, a essência do fenômeno religioso não
aparece somente na compreensão dos seus efeitos na sociedade: “religião pode
significar: ligar um adorador à divindade através da observância de cerimônias
cúlticas e atos de devoção”.
No
2º capitulo, aparecem diversos métodos de estudo da religião, por meio das
abordagens históricas, teológicas, filosóficas, psicológicas, sociológicas,
fenomenológicas e feministas. Donde se conclui que nenhuma abordagem sozinha
fornece uma visão completa da religião e de suas características. Mas todas
devem ser levadas em consideração.
Nos
capítulos de 3 a 8, o autor examina temas pertinentes a todas as religiões: os
rituais, as escrituras, comportamentos, a mulher, a libertação e as divisões
internas nas religiões. O autor possibilita comparar e contrapor os vários
temas, ficando mais fácil detectar semelhanças entre as tradições religiosas
estudadas, podendo se perceber qual a posição de 2 ou 3 religiões em relação a
ele.
As
diferentes temáticas são analisadas a partir de seis religiões que surgiram e
estão presentes nos dias atuais, inclusive com forte influência cultural em
vários continentes: as religiões semíticas
(judaísmo, cristianismo e islamismo) e as indianas
(hinduísmo, budismo e sikhismo).
Nos
capítulos 9 a 15 são abordados questões que tocam a temática: por que as
religiões não conseguem unir-se? No capitulo 9 – trabalha a questão
(confessando um assassinato) e no 10 (o mundo foi planejado?) o 11- o que
somos?; 12 – mente e cérebro; 13 – outros sistemas de crenças; 14 – a
existência de Deus.
No
capitulo 16, volta-se a questão inicial sobre a definição de religião, para em
seguida, levantar-se algumas conjecturas sobre o “futuro das religiões” no cap.
17.
Resumidamente:
O autor se debruça sobre o tema dos rituais, para estudar o que esta sendo
venerado. E faz a partir das seis religiões já citadas. Ele observa que a
maioria das religiões tem lugares e espaços sagrados, voltados especificamente
para o culto, mas afirmam que Deus está presente em todo lugar, e na maneira de
viver, não fazem separação entre sagrado e profano.
Observa
a importância das escrituras Sagradas para a religião – como base para o culto,
a doutrina e a tradição. O que importa não é o cumprimento de normas ou
mandamentos, mas a condição interior do coração. Nas religiões semíticas o judaísmo considera os textos da Torá como
Lei Santa, segundo as interpretações do Talmude. O cristianismo reconhece as
escrituras judaicas (Torá, os Nibiim) profetas e os Ketubim – Escritos
históricos e sapiências, interpretando os segundo ensinamentos de Jesus, aceito
como o Messias prometido, cujas palavras e ações, escritas como evangelho,
seria, “a boa noticia” do Reino de Deus. O islamismo venera o alcorão como
palavra de Deus Alá, revelada em
Maomé, são ’14 capitulos ou suras, que tratam da sabedoria e da doutrina, do
conhecimento e do culto. Seu tema principal é a relação entre deus e seus
fiéis.
Nas religiões Indianas não
há um único Cânon (lista oficial), mas variados textos escritos ao longo de
milhares de anos.
O
autor vem trabalhando também o comportamento e formas de comportamento, e
influencias de seus adeptos, em prol do bem comum.
Conclama
o povo a ser santo como Deus (Lv.19,2). A boa conduta é mais importante que o
ritual.Deixemos de fazer o mal e aprendamos a fazer o bem.
O
cristianismo chama seus adeptos a ir além da lei: são chamados a receber o
Espirito de Deus, do qual vem as virtudes éticas de amor, alegria, paz,
paciência, benevolência...
Já
o islamismo considera o jejum para o muçulmano poder compartilhar o sofrimento
dos menos afortunados,a caridade é a expressão para com as pessoas
necessitadas.
Das
religiões Indianas, o
Hinduísmo
é o que mais se aproxima de religião. Seu objetivo é obter firmeza, perdão,
caridade, pureza, honestidade, controle, fidelidade e libertação da angustia. A
atenção maior é conduta e não na crença.
O
budismo defende que o eu é ilusório e deve ser substituído pelo amor e a
benevolência.
O
cap. Seis é voltado para a situação da mulher nas religiões. O autor conclui
afirmando a importância da mulher nas religiões – o papel da mãe na formação
dos filhos. Mas Crawford ressalta que embora as religiões idealizem a mulher,
os homens suspeitam da sexualidade delas e temem que possam escapar ao controle
e que apesar do protesto feminino,o patriarcado tem predominado.
Prosseguindo,
vem sendo trabalhado a libertação – todas as religiões reconhecem ter algo de
errado com o ser humano e oferecem propostas a salvação e libertar-se da
ignorância – melhorar a vida aqui e chegar ao paraíso ou nirvana (plenificação
em Deus dos que chegam a iluminação).
O
autor vem fazendo uma retrospectiva para divisão da religiões, no cap. 8 e no 9
fala do porque as religiões não conseguem unir-se.
Há
uma dificuldade de relacionamento. Já que apontam um mesmo Deus. A desunião
nasce pela diversidade das crenças e falta de diálogo.
Do
10 ao 13, vem mostrando o impacto da ciências sobre a religião, e a conseqüência
disso. O conhecimento científico substituindo a religião quando se trata de
compreender a origem e evolução da raça humana.
O
que somos e o que podemos nos tornar. É
proposto um debate entre mente e cérebro. O autor conclui que o ser humano pode ser um pouco inferior aos anjos, mas
possui razão e criatividade, busca
sentido na vida, tem capacidade de fazer escolhas morais e é responsável diante
de Deus. O valor do amor opõe-se ao mundo da sobrevivência dos mais fortes.
As
religiões não negam que procedemos do pó da terra e que a evolução poderia ser
a maneira encontrada pelo criador, para criar a humanidade, mas apontar para o
imago (margem) de Deus que todos possuímos. Não há prova de que é assim mas é
uma perspectiva que não pode ser menosprezada quando considerarmos o que somos
e o que podemos vir a ser.
No
14 – Outros sistemas de crença – no sec. X desenvolveram alguns movimentos: cientologia, consciência de krishua,
meninos de Deus, Povo de Jesus, Missão da Luz Divina, Meditação, transcedental
e Igreja da Unificação. Nesses movimentos há uma rtendência ao panteísmo e
ao politeísmo; alguns cultos caem sob a denominação de Nova era e trabalgam com mitos, xamanismo mensagens do além,
cristais etc. São vgetarianos, considerados a terra como um ser vivo pessoal.
Acreditam no sobrenatural, em alienígenas e no fim do mundo.
15
– trabalha a existência de Deus – debate entre os que crêem e os que não crêem.
Finalisando
16 e 17, haverá um retorno ao cap. 1. Concentram-se no aspecto funcional da
religião.
quarta-feira, 16 de outubro de 2013
Afinal, para que serve a História?
Afinal,
para que serve a História?
O modo de
se compreender o passado pode acontecer de diferentes formas.
No seu primeiro dia de aula,
provavelmente na segunda fase do ensino fundamental, um professor de História
entrou em sala para discutir a importância do estudo dessa matéria. Tal
discussão, sem dúvida, é importante. Afinal, as questões e modos de se
investigar o passado nessa nova fase do ensino passam a ser mais complexas e
você, enquanto indivíduo em formação, já se mostra tentado a levantar algumas
questões mais profundas sobre o que aconteceu no passado.
Sabemos que muitos por aí
aprenderam que a História é importante para que não cometamos os mesmos erros
do passado, para que tenhamos a oportunidade de organizar o agora e o porvir de
modo mais seguro. Sob tal perspectiva, o estudo dos fatos consumados teria um
valor estratégico. Em outras palavras, essa ideia sugere que a análise e a
crítica do passado determinam o alcance de um futuro livre das mazelas que um
dia nos afligiu.
De fato, ao observar esse tipo de
uso para o passado, somos tentados a romantizar a História como ferramenta
indispensável ao progresso. Contudo, seria mesmo correto dizer que a
compreensão do passado garante verdadeiramente uma sociedade ou uma civilização
mais aprimorada? Se assim fosse, toda a mazela que a Primeira Guerra Mundial
trouxe para a Europa incutiria a “lição” de que uma Segunda Guerra Mundial não
deveria acontecer. Mas não foi bem assim que as coisas se deram, não é?
Percebendo esse tipo de
incoerência é que temos a chance de intuir que a História não tem essa missão
salvadora de alertar ao homem sobre os erros que ele não pode cometer
novamente. Na verdade, antes de acreditar que as sociedades e civilizações já
cometeram um mesmo equívoco duas vezes, devemos entender que esses homens que
são objetos de estudo do passado não pensam, sentem, acreditam ou sonham da
mesma forma através dos dias, anos, décadas, séculos e milênios.
Sendo assim, a noção de progresso
atribuída à História deve ser abandonada em favor de uma investigação dos
valores, das relações sociais, conflitos e outros vestígios que nos mostram a
transitoriedade e a mutação dos contextos em que os fatos históricos são
consumados. É desse justo modo que passamos a entender que o homem e as sociedades
que lutaram e sofreram na Primeira Guerra Mundial não são exatamente os mesmos
que surgiram no cenário da Segunda Guerra Mundial.
Feita essa reflexão, não devemos
chegar ao ponto de pensar que os contextos e períodos em que a História decorre
são radicalmente distintos entre si. De uma época para outra, podemos notar que
as sociedades não abandonam seu antigo modo de agir para incorporar uma postura
completamente inovadora. Em cada período é necessário reconhecer as
continuidades e descontinuidades que mostram a força que o passado possuiu
enquanto referencial importante na formação dos indivíduos e das coletividades.
Ao realizar esses apontamentos,
não devemos acreditar que o passado não passa de um jogo caótico controlado por
jogadores (no caso, os homens) que não sabem definir suas próprias regras.
Antes disso, é muito mais interessante notar que esse jogo tem feições
múltiplas e que as formas de reconhecer a natureza de suas regras podem se
transformar de acordo com a forma que olhamos para o passado.
Sendo assim, a investigação do
passado se transforma em um grande debate em que cada interessado tem a
oportunidade de mostrar uma riqueza inédita sobre um mesmo tema. Na medida em
que isso acontece, não só temos a chance de pensar sobre aquilo que o homem já
fez, mas também temos uma maneira curiosa, mesmo que seja pela completa
diferença, de debater os nossos valores e questionar o agora com os “olhos” de
nossos antepassados.
Por:
Rainer Sousa.
Mestre em
História
domingo, 29 de setembro de 2013
Goiânia ( segundo Manuel Ferreira Lima Filho)
ILHA
Revista de Antropologia
Goiânia: uma cidade patrimonial?
No Cerrado nasce Goiânia
A decisão de se construir Goiânia, uma nova capital para o
estado de Goiás, era a de que a velha capital, cidade de Goiás,
fundada em 1726, à margens do Rio Vermelho, não mais apresentava
condições geográficas e ambientais para o desenvolvimento
de uma capital de um Estado que tinha como principal meta romper
com a noção de atraso que o imaginário nacional tinha sobre ele.
Aliado a esse fato, registra-se a trama política coordenada pelo
interventor Pedro Ludovico Teixeira, com total apoio do presidente
Getulio Vargas, de enfraquecer o comando tradicional de velhas oligarquias
no Estado, notadamente a dos Caiado, deslocando a capital
de um espaço político e social liderados por alguns de seus representantes.
Nessa primeira onda bachelariana do tempo, Goiânia nasce
assim como ruptura, um vetor da cidade de Goiás. Suas primeiras
formas espaciais são pensadas nas pranchas dos urbanistas e projetistas.
Em 1933, sua pedra fundamental é lançada onde hoje é o poço do
elevador do Palácio das Esmeraldas, residência oficial do governador,
na praça central da cidade indicada por Attílio Correa Lima com um
pedaço de osso de uma ema diante de um cerrado aberto e plano
(Metran, 2006).
Essa ruptura espacial e temporal não foi tão pacífica assim. Houve
resistências, e a cidade de Goiás se dividiu. Mas o fato é que Goiânia
começa a ser construída em 1933. O poder legislativo e o executivo são
transferidos em 1937, e o batismo cultural da cidade aconteceu em
1942 com grande mobilização nacional.
Com os primeiros anos, algumas famílias da cidade de Goiás
mudaram para Goiânia, enquanto outras permanecem. E assim, separam-
se ritmos entre as cidades: Goiás se volta para continuar suas
formas de sociabilidade nascidas de uma passado colonial, com suas
260
ILHA
Revista de Antropologia
Manuel Ferreira Lima Filho
festas religiosas, seus alfenins, suas igrejas, seus artistas, sua elite,
álem de sua periferia profundamente identificadas com símbolos do
mundo rural. Não pára no tempo, mas segue seu próprio ritmo,
historicidades, sociabilidades e referências culturais e identitárias.
Goiânia, por sua vez, busca a velocidade da modernização, de cumprir
sua meta de metrópole no Planalto Central do Brasil, como um ensaio
experimental para a construção de Brasília anos depois, e, ao mesmo
tempo, inspirada na experiência de Belo Horizonte no final do século
XIX.
Foto 01: Praça do Coreto na cidade de Goiás, no ínicio do século XX
Fonte: Craveiro (1994)
O Plano urbanístico da nova cidade, concebido por Attílio Correa
Lima, de influência francesa, explorou a topografia do sítio, pois o
traçado proposto para o núcleo pioneiro de Goiânia favorecia a drenagem
por topografia, integrando as microbacias hidrográficas. Ele
procurou privilegiar o sistema viário com avenidas largas, sistemas de
estacionamento, beneficiando assim o comércio. Utilizou-se, então de
uma malha ortogonal. Para a zona industrial, nas imediações da estrada
de ferro concebeu desvios e uma estação de triagem. Para a zona
residencial o plano previa uma área tranqüila, distante do movimento
do centro. Reservou, em seus planos, grandes áreas verdes que visavam
a salubridade e a beleza. O plano por ele elaborado criava os setores
central, norte, sul, oeste e leste com delimitação espacial bem definida.
Com mão de obra recrutada do interior de Goiás e de outras regiões do
país construiu-se assim Goiânia. (Machado et al, 2003 e Silva, 2006).
261
ILHA
Revista de Antropologia
Goiânia: uma cidade patrimonial?
Mais tarde, outro urbanista, Armando de Godoy, de influência inglesa,
continua a projetar os primeiros traços da nova capital inspirado na
cidade jardim inglesa.
Podemos observar na tabela abaixo o crescimento demográfico
da cidade entre as décadas de 1940 a 1980:
1940 19.000 habitantes
1950 53.000 habitantes
1960 150.000 habitantes
1980 700.000 habitantes
1998 1 milhão
2006 (estimativa em julho) 1.220,412 habitantes
Dados Populacionais da Cidade de Goiânia (1940-2006)
Fonte: IBGE (2007)
Projetada para ter 50.000 habitantes, a população de Goiânia
cresceu rapidamente, unindo-se a Campinas, que dela estava separada
por 6 km. Campinas tornou-se um bairro de Goiânia, como muitos
outros que foram surgindo (Machado et al, 2003).
Tornando-se “Patrimônio”
No ano de 2002, Goiânia é alvo de um processo de tombamento
Federal de seu Núcleo Pioneiro juntamente com edifícios públicos e
componentes Art Decó (IPHAN, 2002). O Estilo Art Déco foi lançando
oficialmente em 1925, em Paris. A arquitetura é marcada por volumetria
geométrica, simétrica e imponente, com ornamentação e, portanto,
muitos elementos decorativos. No Brasil, foi amplamente difundido no
período do Estado Novo, tendo como exemplo típico a torre do relógio
da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, e quase todas os edifícios dos
Correios espalhados pelo país construídos nessa época. Em Goiânia, o
estilo foi adotado nos principais prédios públicos.
O processo de tombamento do conjunto de elementos Déco em
Goiânia foi conduzindo por várias instituições e atores sociais, liderados
pelo IPHAN regional, movidos pelo sucesso de um processo anterior,
que culminou na declaração da cidade de Goiás como patrimônio da
Humanidade pela Unesco. Novamente as duas cidades são coladas no
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ILHA
Revista de Antropologia
Manuel Ferreira Lima Filho
imaginário e nas ações políticas do Estado Brasileiro. Se antes Goiânia
nasce como um ato de rompimento da Cidade de Goiás (1933), agora
(une-se) nutre-se da experiência bem sucedida do processo do
tombamento de Goiás para reivindicar e ver também bem sucedido a
nomeação de um status patrimonial em âmbito nacional (2002). É
como se os vetores do tempo se unissem novamente pela categoria
excepcionalidade: uma pelo casario colonial, outra pelos seus
componentes Art Déco.1
O processo do tombamento de Goiânia colocou em pauta o
patrimônio cultural da cidade e indagações sobre os significados desse
tombamento nas representações sociais que os pioneiros e habitantes
da cidade tinham sobre ela. Embora seja uma cidade relativamente
nova (73 anos) a questão do “centro histórico” assim como toda a
cidade, tem sido objeto de quatro planos urbanos que defendiam
estratégias, instituíam concursos públicos de requalificação do núcleo
histórico e de fachadas dos prédios, além de demandas de associações
junto à prefeitura. Atualmente, um quinto plano tramita na Câmara
Municipal (Silva, 2006).
O processo de tombamento também institui uma “memória
oficial”, e Goiânia se “torna” colecionada, classificada, indexada, padronizada,
enfim, musealizada. Se o processo de tombamento do
conjunto de vinte e dois elementos e prédios públicos considerados
representativos do estilo Art Déco coloca a cidade positivamente no
cenário nacional e internacional, pode, por outro lado, induzir A um
processo identitário redutor.
Se o processo de tombamento pode ser visto como uma ação
naturalizada do IPHAN, numa esteira de tradição do órgão, desde os
tempos de Rodrigo Mello Franco, amparada por um direito positivista
de nossa legislação, as pesquisas, tanto do ponto de vista da arquitetura
quanto da antropologia, apontam, inequivocadamente, para o
fato de que a Art Déco está longe de ser uma expressão de penetração
no imaginário da cidade. Ela deve se compreendida apenas como uma
ação legitima e normativa do IPHAN aos aspectos inerentes ao processo
de tombamento, proteção e divulgação e até mesmo de valorização de
uma, entre várias formas arquitetônicas, que registrou uma concepção
de morar, representar idéias e transmitir valores. E assim, o Art Déco
263
ILHA
Revista de Antropologia
Goiânia: uma cidade patrimonial?
não pode ser utilizado como um ícone totalizador da identidade da
cidade.
Se o Art Deco é uma das formas arquitetônicas da cidade que
remete a um tempo social e político, notadamente da política de Vargas,
quais são as outras formas temporais e sociais que poderiam desenhar
o mosaico de formas e tempos sociais de Goiânia ?
A Rua 20 como Rito de Passagem
Podemos pensar que na perspectiva da literatura nacional e regional,
os grandes espaços do cerrado do estado de Goiás na década de
1930 e 1940 se identificam com uma categoria do pensamento social
brasileiro denominada de sertão. Grandes espaços, gado a esmo, natureza
indomável, casebres, atraso, isolamento. Nesse sentido, podemos
pensar que o movimento de deslocamento da capital do Estado da cidade
de Goiás para as proximidades de Campinas (hoje um bairro de Goiânia)
é um deslocamento no “sertão” na perspectiva que Vidal e Souza (1997)
denominou de “crescer para dentro” na esteira da construção de uma
nacionalidade colocada em prática pelos que marcharam para o oeste,
como analisei em outro trabalho entre os pioneiros da Marcha para o
Oeste (Lima Filho, 2001). Assim, nas próprias narrativas dos primeiros
habitantes de Goiânia, o cenário era de sertão, um mundo mágico: a
paisagem, as impressões e representações da natureza a ser domesticada,
matas, bichos, forças incontroláveis da natureza, vastidão, vazio como
nos mostra Da. Armênia:
Não havia água, nem energia elétrica ainda. (...) Para preparar as refeições
de nossa filha, usávamos uma pequena fogueira, do lado de fora do prédio.
Não se encontrava um fogareiro. (...) até vir de Goiás um fogareiro de
álcool. Na época, convivíamos em Goiânia com pequenos animais que
viviam na periferia das matas, como coelhos, iaras, gatos do mato, (...)
sagüis, tatus etc. Naquele mundo mágico, o vigia noturno do Grande
Hotel caçava coelho e tatu-galinha (...) Aranhas caranguejeiras entravam
livremente pelas portas de fora (...) A tempestades de Goiânia (...) eram
realmente impressionantes! Na vasta campina aberta, ainda quase vazia
o vento campeava solto, adquirindo uma força e velocidade incontroláveis
(...) Caiam raios em todas as direções (...) com a força que adquiria
começava a levantar folhas, papéis, galhos secos e por fim já era uma
ameaça terrível para as pessoas (...) ai de quem cruzasse sua rota; era
arrastado, rodopiado (...) lançado de encontro aos muros ou cercas de
arame farpado. A população temia-os (...) Misto de cidade e sertão (Souza,
1989: 25-28 e 51).
264
ILHA
Revista de Antropologia
Manuel Ferreira Lima Filho
Foto 02: Rua
20. Antônio Pereira
da Silva. Déc. 1940.
Goiânia. Acervo
MIS-GO.
Este ambiente narrado como sertão era um estado “cru”, pensado
por Lévi Strauss. A instalação da “civilização” era o inicio do processo
do “cozimento” da transformação da natureza para a cultura.
Contudo, numa perspectiva etnográfica, os primeiros habitantes de
Goiânia não eram sertanejos. Eram pessoas, provenientes do interior de
Goiás e de Minas Gerais, principalmente. A primeira leva de moradores
da antiga capital, funcionários públicos, professores, administradores,
profissionais liberais e, de modo expressivo, operários que vieram para a
construção dos prédios públicos, notadamente em estilo Art Déco.
Juntamente com o conjunto desses edifícios públicos, que mais tarde
seriam tombados pelo IPHAN, o governo construiu uma série de casas
padrão onde funcionou o palácio do governo estadual, a faculdade de
Direito, o conservatório de música e como residências para os funcionários
que chegavam da antiga capital. Mais tarde, essas casas foram vendidas,
como registrou Monteiro (1938: 151):
Os primeiros prédios concluídos foram os dez destinados aos funcionários
e ao Jardim de Infância. Os dez prédios foram construídos na rua 20. Foi
essa a primeira rua de Goiânia. Nela foram instalados provisoriamente o
Palácio, a Secretaria Geral, o Escritório Central de Obras e a Diretoria
Geral da Fazenda, que por ser muito grande, teve que ocupar duas casas,
sendo uma para Seção de Terras. Uma das novas casas foi destinada à
residência do governador Dr. Pedro Ludovico Teixeira. Outra serviu de
residência ao Dr. Câmara Filho, direto do Departamento de Propaganda
e Expansão Econômica (...) Numa, foi residir o Dr. Sólon de Almeida
Superintendente do Departamento de Propaganda e venda de lotes.
Noutra residiu o Dr. Germano o Roriz até fins de 1935 quando (...) passou
[para]o Diretor Geral e Segurança Publicas Dr. João Monteiro. (Monteiro,
1938:151)
265
ILHA
Revista de Antropologia
Goiânia: uma cidade patrimonial?
Mas enquanto essas casas estavam sendo construídas, naquela
que seria considerada oficialmente a primeira rua de Goiânia, denominada
RUA 20, os primeiros habitantes, de fato, fizeram suas casas
de pau a pique e palha às margens do córrego Botafogo, fonte de água
potável. Ai foi instalada a pensão da Dona Maruca, onde todos se
encontravam. Nas margens do mesmo córrego, banheiros públicos
foram construídos e o lugar era fonte de água potável. Nesse primeiro
momento de ocupação havia, portanto, uma identificação com o mundo
rural, muito próximo da visão de mundo dos lugares de onde vieram:
pequenos animais silvestres, árvores frutíferas do cerrado, peixes,
banhos de córrego, noites estreladas enfim uma paisagem bucólica
embora “selvagem”.
Não havia água encanada. Então, as casas foram feitas com fundo, o
quintal, digamos assim, a terminação do quintal passava no córrego
Botafogo. Ai fizeram dois banheiros, forçaram... eles construíram uma
qued´água que tinha o banheiro das mulheres e depois mais para cima
dos homens (Entrevista com Da. Nize de Freitas 19/09/2006)
Foto 03: Rua 20. Eduardo Bilemjian. Déc. 1930. Goiânia. Acervo MIS-GO.
A Rua 20, em construção, foi traçada de forma paralela ao córrego
Botafogo. Entre a Rua 20 e o Córrego Botafogo se formou mais
espontaneamente a Rua 24, caracterizada por residências, embora essa
rua tenha sido marcada pelo lugar, sob uma Moreira, escolhido por
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ILHA
Revista de Antropologia
Manuel Ferreira Lima Filho
Pedro Ludovico para assinar seus primeiros atos administrativos na
capital. Apenas mais tarde, passou a administrar do “palacinho” da
Rua 20. A importância dessa árvore no imaginário dos depoentes, lhe
dá um lugar de destaque nas memórias dos primeiros dias da nova
cidade como é o caso da Dona Virginia Pereira Mendes que em suas
reminiscências conversa com a velha árvore:
Tenho muita recordação de tudo que passou. Tenho a impressão que
você deve estar pertinho dos 80 ou 90 anos de existência. Deus te
abençoes pelo que tivesses, pois quantos anos faz que debaixo de suas
sombras durante o dia e a noite o repouso de um sono tranqüilo. Todos
que te procuram foram recebidos com muita bondade e carinho. Que
lindo destino foi o seu minha bela Gameleira [Moreira]. No dia que
você nasceu, talvez estivesse imaginado que ira ficar bem solitária, bem
sozinha, nesse imenso planalto. Mas o seu destino já estava reservado,
você teria que dar acolhida para todas aquelas famílias que estavam
migrando para essa bela capital. Assim, passaram muitos por debaixo
de sua sombra. (Virgínia Pereira Mendes, (01/11/2005).
Desta maneira, podemos dizer que a Rua 20 era um primeiro
ponto oficial, após todos passarem pelas sombras da velha Amoreira
bem próxima do Córrego Botafogo. O primeiro rito. Era, pois, um tipo
de batismo para quem viesse morar na nova capital. Depois havia o
rito oficial mesmo, de se abrigar na casas da Rua 20. Era uma rua
transitória, mas necessária. Nela, estavam concentrados valores
considerados importantes: a igreja (na Rua 20 morava o Bispo) e ao
lado foi construída a catedral de Goiânia, o Palácio do Governo, a
faculdade de Direito e Conservatório de Música, o Jardim de Infância
entre outros. Portanto, morar na rua 20 era morar perto do poder e do
prestígio. Entretanto, à medida em que a cidade crescia, aos poucos
essa função de liminaridade foi se perdendo. Com a construção do
Setor Sul, durante muitos anos considerado o setor nobre da cidade,
alguns moradores de maior poder aquisitivo construiriam suas casas
nele. Os funcionários e servidores foram também se distribuindo por
outros bairros da cidade, como o Bairro Popular, o Setor dos
Funcionários, o Setor Fama. Alguns moradores, como o advogado e
ex-professor do curso de Direto, Pereira Zeka, permaneceram na mesma
casa construída na década de 40, que seu sogro comprara do Estado.
Os mais pobres continuaram às margens do Córrego Botafogo, e até
267
ILHA
Revista de Antropologia
Goiânia: uma cidade patrimonial?
tarde seria uma grande favela, e depois se transformar no Setor
Universitário, onde hoje se encontram as primeiras edificações das
Universidades Federal e Católica de Goiás.
Observa-se, dessa maneira, que a cidade nasceu elitizada, na divisão
de seus espaços urbanos para além de qualquer boa intenção de
seus urbanistas e planejadores. Analisando as narrativas dos pioneiros,
categoria ampla, mas com quem identificamos a primeira e segunda
geração que viram a cidade nascer e crescer, moradores das primeiras
ruas e bairros ou mesmo filhos de políticos e funcionários de alto escalão
na época, têm-se a convergência de dados de que a cidade era dividida
em três áreas: 1) O manto de Nossa Senhora composto pelas avenidas
Araguaia, Tocantins e Paranaíba e Praça Cívica. As margens do Córrego
Botafogo e por último a região Norte depois da Estrada de Ferro e da
Avenida Paranaíba que era asfaltada. Pelo mapa tem-se uma noção desses
espaços. Divisão que fica clara no depoimento da filha do primeiro
prefeito Venerando de Freitas Borges, que nasceu na cidade antes mesmo
de seu batismo cultural em 1942.
Nos anos Dourados, nos anos 50 nós dizíamos assim: Goiânia
esta dividida, da Av. Paranaíba para cima, que o Palácio, era a nata da
sociedade que morava, da Av. Paranaíba, era a classe média baixa.
Então, as pessoas tinham essa rivalidade. Então você queria falar alguma
coisa assim, negativa de alguém, Ah fulano é... não é do lado
Sul. Ela mora além da Avenida Paranaíba. A Avenida Paranaíba era
um divisor, um divisor entre as classe sociais e até hoje isso existe.
Você mora onde? Ah no bairro do buraco? Sempre existiu. E Botafogo,
ali eram invasores, eram lavradores, empregadas domesticas.... ( Nize
de Freitas, 19/09/2006).
Reflexões patrimoniais na perspectiva antropológica
Quando se olha a questão patrimonial pela perspectiva antropológica,
percebemos algumas caminhos que desenham uma tensão com
relação ao tema da preservação, portanto do tombamento, do conceito
antropológico de identidade e do próprio processo inerente a
constituição e mobilidade das formas urbanas e seu dinâmico processo.
Poderíamos também associar com a idéia da Teoria do Conflito de
George Simmel nas diferentes formas de viver o urbano.2
268
ILHA
Revista de Antropologia
Manuel Ferreira Lima Filho
A experiência de uma antropologia na cidade de Goiânia (Lima
Filho, 2004) provocou um jogo de espelhos desses conceitos e das
narrativas relacionadas a eles, seja pelos entrevistados, seja pelos representantes
de políticas públicas, seja pelo próprio discurso antropológico.
Num primeiro momento, fica claro que a representatividade do
conjunto de Are Déco, como representante de um tempo áureo do início
da cidade, não tem correspondência direta com as narrativas do mesmo
período em que tais prédios públicos foram construídos. Típicamente
frutos de uma ação governista da Era Vargas, eles representam um
estilo arquitetônico em voga no período da década de 30, 40 e já tardio
como no caso da estação ferroviária da cidade nos anos 50. Estilo tão
diferente do olhar dos goianos que a filha do primeiro prefeito, Nize
de Freitas, perguntou ao pai o por quê daquela forma engraçada do
Cine Teatro Goiânia, ao que ele respondeu “Observa bem minha filha,
o teatro Goiânia é uma galera, observa bem que o formato dele é de
uma galera” e Dona Nize arremata: “ou seja, ele foi inspirado numa
galera egípcia”. Uma galera egípcia em pleno Planalto Central!
Considerado excepcional pelo IPHAN, o Teatro de Goaânia
ganhou o status de proteção federal. Goiânia entrou, assim, em 2001,
no seleto circulo de bens patrimoniais tombados pela União, fazendo
Foto 4 – Mapa de Goiânia (1937) por Attílio Corrêa Lima
Fonte: DAHER (2003).
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ILHA
Revista de Antropologia
Goiânia: uma cidade patrimonial?
jus à atuação do órgão federal que foi instituído pela mesma lei que
criou o tombamento. Como já analisei, Goiânia se equivale à cidade
de Goiás nessa ciranda patrimonial do tempo.
As tensões que resistem como consequência disso, do ponto de
vista antropológico são, basicamente, duas. Primeiro, o estilo, como já
afirmou Metran (2006), não tem permeabilidade na concepção de
morar da população goianiense. Nem mesmo as “casas tipo” do inicio
da cidade, construídas pelo governo estadual, têm a Art Déco como
preponderante. Notam-se elementos desse estilo em algumas casas e
sobrados. Registra-se aqui a resistência cultural por detrás do discurso
e da práxis ideológica e de modernização de Pedro Ludovico e sua
equipe. Como vimos, a mudança provocou um movimento de
resistência na cidade de Goiás. Vencidos pelas mãos fortes de Getúlio
Vargas e de Pedro Ludovico, os vilaboenses quase se transfiguram na
constituição de futuros goianienses. Como que numa atitude tácita,
os descendentes dessa geração mães elegem, ao longo do desenvolvimento
da cidade, o estilo neocolonial como preferido. O estilo é
inspirado no passado e se caracteriza por largos beirais de madeiramento
aparente, recortados, frontões curvos como das igrejas
oitocentistas, vergas de arcos entre outros elementos. Em outras
palavras, os goianienses se rendem ao novo, porém não “abrem mão”
do velho. É só passear pela cidade. Portanto, aqui reside o contraponto.
O que se tombou foi o que o governo elegeu, no passado e no presente,
e não as pessoas, as famílias, as memórias. Disso decorre a questão:
não seria o neocolonial alvo de atenção de tombamento federal,
amparado pela legitimidade de seus moradores? A resposta parece ser
não, do ponto de vista da lei do tombamento, uma vez, contaminada
pelo hibridismo de formas, o neocolonial de Goiânia se distancia muito
do ideal de excepcionalidade. Para isso, o Colonial de Goiás já foi
tombado, poderiam alegar alguns. Contudo, do ponto de vista
antropológico, a negação é constrangedora, pois revela uma distancia
entre aquilo que é concebido como referências culturais e aquilo que é
eleito pelo Estado. Afinal, as culturas não são dinâmicas e híbridas
como quer Barth (1968) e Canclini (2003)? Ou ainda como questiona
Eckert (2002: 78).
270
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Revista de Antropologia
Manuel Ferreira Lima Filho
“Quem são os guardiões da memória celebrada pelo Estado e divulgada
pelos meios de comunicação de massa ? E quem são os herdeiros dessa
memória ? Estaremos, hoje conformados à memória seletiva de um
discurso oficial ou, estamos ao contrário (...) atentos aos fatores
aglutinantes apreendidos num processo de emancipação do sujeito e
coletivização do conhecimento histórico” ?
O jurista Frederico Marés esclarece que qualquer cidadão ao ver
suas referências culturais ameaçadas, mesmo que coletivas, pode entrar
com pedido de tombamento na justiça (Mares, 1986:23).
Daí formula-se a questão inevitável e provocadora: afinal, para
que serve o tombamento? Ouro Preto foi conservada porque foi tombada
ou porque foi esquecida no tempo, conservando um passado
(Gonçalves, 2001) que só mais tarde seria resgatado como ícone
patrimonial dos tempos modernos? Esse mal-estar na cultura, ou em
nossos arquétipos patrimoniais, para lembrarmos de Freud ou Jung,
talvez possa ser amenizado com a compensação do registro imaterial,
que, aliás, também resvala na armadilha fácil do excepcional. Assim,
podemos concluir que, do ponto de vista conceitual, tanto o
Tombamento quanto o Registro Imaterial são males patrimoniais
necessários, mas insolúveis na dinâmica das culturas.
A segunda questão conceitual que se coloca está diretamente relacionada
à idéia da preservação, tão cara na trajetória brasileira de
construção de uma identidade nacional, de nossas políticas patrimoniais
e que se impregna em nós como se o apego ao passado fosse uma
remissão pelo peso incômodo do atraso, da pobreza, do sertão, da
fatalidade histórica tão retoricamente ensaiada pelo nossos pensadores
da passagem do século XIX e inicio do século XX e tão obsessivamente
colocada em marcha por nossos estadistas e governos. Assim, faz sentido
o que Eckert e Rocha chamam de cidade-ruína que “é a expressão do
conjunto de intenções e de comportamento do homem brasileiro diante
do tempo” (...) “os habitantes valorizam o presente reformulando o
passado” (Eckert e Rocha, 2005: 24).
Nesse vai-e-vem temporal, o movimento que impulsiona para a
modernidade, rompe com o passado, destrói os patrimônios, tornam
inóspitas as relações sociais, individualiza o que foi marcadamente holista
por excelência. A volta ao passado parece querer ressemantizar e fazer
271
ILHA
Revista de Antropologia
Goiânia: uma cidade patrimonial?
marcar o passado no presente: é preciso proteger, contaminar-se de um
passado que nós mesmos destruímos, daí a busca por objetos, coleções,
ruínas. Talvez daí se compreenda uma ambigüidade nas narrativas
patrimoniais do homem urbano, como elucida a voz de um dos pioneiros
entrevistados, que nos disse que mudou radicalmente a parte frontal de
sua casa da Rua 20, uma das primeiras de Goiânia, devido à noticia que
correu de que o Estado iria tombar sua casa, “fiz um pecado patrimonial”
nas palavras dele. No entanto, a parte interna continua intacta. Mas
seu filho adiantou e sentenciou “tem que mudar mesmo, professor, faz
parte da modernização”. Portanto, a contraposição de uma proteção por
proteção sem convencimento ou algo que valha ou que faça sentido é
pura fumaça de retóricas para amenizar nossas sangrias patrimoniais e,
diria, existenciais. Como pensou Lefebvre (2004: 112) o fenômeno
urbano é ao mesmo tempo simultâneo e cumulativo. Simultâneo porque
é ponto de convergências dispares, memórias cruzadas, camadas do
passado, como num corte estratigráfico revela a erosão do tempo,
marcando a ausência, mas ao mesmo tempo demarcando o que ficou.
Cumulativo, pois demonstra vários conteúdos, culturas, técnicas, estilos,
formas urbanas, eu acrescentaria. Daí a coexistência, em uma mesma
casa o quase sentimento de culpa do morador já idoso e o rompimento
o filho, de outra geração, mas que sabe de cór o nome de todos os
vizinhos pioneiros e que demonstrou “controle de impressões” nesse
vis à vis com o antropólogo, numa situação de campo.
Entendo assim que a proteção ou a destruição fazem parte de um
jogo de poder, de controle de impressões e retóricas e de constituição
de personas políticas físicas ou jurídicas. É por isso que na Rua 20 se
encontram fragmentos de um passado representado pelos casarões
como a Casa de Colemar Natal e Silva, Pereira Zeka, a casa eclética dos
Sabino, a casa estilo normando de Helio Naves e aqui e acolá os brisessoleil
e traços retos das casas modernistas. Além disso, tem-se os
edifícios que colocaram abaixo a antiga Cúria e a Casa do Bispo, o
Palacinho de Pedro Ludovico e tantas outras. A Rua 20 é por excelência,
a metamorfose da cidade. Daí sua fisionomia tão distante de qualquer
intenção de tombamento federal ou de qualquer atitude patrimonial
272
ILHA
Revista de Antropologia
Manuel Ferreira Lima Filho
dos poderes estadual (que se restringiu a tombar uma casa tipo) e
municipal. O passado agoniza nos estacionamentos da cidade, que
quase tem um carro por cidadão habilitado. E assim, para lembrarmos
Sahlins, poderia dizer que o tombamento esse mito de origem de pensar
patrimonial brasileiro implode nos eventos históricos da cidade que
se transfigura. Mas como qualquer bom mito, suas estruturas arcaicas
permanecem apesar do roer do tempo, e assim, de vez em quando sua
eficácia tece as narrativas e ações concatenadas. E como não poderia
deixar de ser o rito acontece para reificar o mito. Não foi assim com o
tombamento do Art Déco em Goiânia e suas narrativas?
Notas
1 Sobre as questões históricas, ideológicas e de poder identificando os movimentos
políticos e históricos sobre as cidades de Goiás e Goiânia ver o
meu artigo” O Futuro do Passado da cidade de Goiás: gestão, memória e
identidade” (2003).
2 Ver Ekert (2002).
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Revista de Antropologia
Goiânia: uma cidade patrimonial?
No Cerrado nasce Goiânia
A decisão de se construir Goiânia, uma nova capital para o
estado de Goiás, era a de que a velha capital, cidade de Goiás,
fundada em 1726, à margens do Rio Vermelho, não mais apresentava
condições geográficas e ambientais para o desenvolvimento
de uma capital de um Estado que tinha como principal meta romper
com a noção de atraso que o imaginário nacional tinha sobre ele.
Aliado a esse fato, registra-se a trama política coordenada pelo
interventor Pedro Ludovico Teixeira, com total apoio do presidente
Getulio Vargas, de enfraquecer o comando tradicional de velhas oligarquias
no Estado, notadamente a dos Caiado, deslocando a capital
de um espaço político e social liderados por alguns de seus representantes.
Nessa primeira onda bachelariana do tempo, Goiânia nasce
assim como ruptura, um vetor da cidade de Goiás. Suas primeiras
formas espaciais são pensadas nas pranchas dos urbanistas e projetistas.
Em 1933, sua pedra fundamental é lançada onde hoje é o poço do
elevador do Palácio das Esmeraldas, residência oficial do governador,
na praça central da cidade indicada por Attílio Correa Lima com um
pedaço de osso de uma ema diante de um cerrado aberto e plano
(Metran, 2006).
Essa ruptura espacial e temporal não foi tão pacífica assim. Houve
resistências, e a cidade de Goiás se dividiu. Mas o fato é que Goiânia
começa a ser construída em 1933. O poder legislativo e o executivo são
transferidos em 1937, e o batismo cultural da cidade aconteceu em
1942 com grande mobilização nacional.
Com os primeiros anos, algumas famílias da cidade de Goiás
mudaram para Goiânia, enquanto outras permanecem. E assim, separam-
se ritmos entre as cidades: Goiás se volta para continuar suas
formas de sociabilidade nascidas de uma passado colonial, com suas
260
ILHA
Revista de Antropologia
Manuel Ferreira Lima Filho
festas religiosas, seus alfenins, suas igrejas, seus artistas, sua elite,
álem de sua periferia profundamente identificadas com símbolos do
mundo rural. Não pára no tempo, mas segue seu próprio ritmo,
historicidades, sociabilidades e referências culturais e identitárias.
Goiânia, por sua vez, busca a velocidade da modernização, de cumprir
sua meta de metrópole no Planalto Central do Brasil, como um ensaio
experimental para a construção de Brasília anos depois, e, ao mesmo
tempo, inspirada na experiência de Belo Horizonte no final do século
XIX.
Foto 01: Praça do Coreto na cidade de Goiás, no ínicio do século XX
Fonte: Craveiro (1994)
O Plano urbanístico da nova cidade, concebido por Attílio Correa
Lima, de influência francesa, explorou a topografia do sítio, pois o
traçado proposto para o núcleo pioneiro de Goiânia favorecia a drenagem
por topografia, integrando as microbacias hidrográficas. Ele
procurou privilegiar o sistema viário com avenidas largas, sistemas de
estacionamento, beneficiando assim o comércio. Utilizou-se, então de
uma malha ortogonal. Para a zona industrial, nas imediações da estrada
de ferro concebeu desvios e uma estação de triagem. Para a zona
residencial o plano previa uma área tranqüila, distante do movimento
do centro. Reservou, em seus planos, grandes áreas verdes que visavam
a salubridade e a beleza. O plano por ele elaborado criava os setores
central, norte, sul, oeste e leste com delimitação espacial bem definida.
Com mão de obra recrutada do interior de Goiás e de outras regiões do
país construiu-se assim Goiânia. (Machado et al, 2003 e Silva, 2006).
261
ILHA
Revista de Antropologia
Goiânia: uma cidade patrimonial?
Mais tarde, outro urbanista, Armando de Godoy, de influência inglesa,
continua a projetar os primeiros traços da nova capital inspirado na
cidade jardim inglesa.
Podemos observar na tabela abaixo o crescimento demográfico
da cidade entre as décadas de 1940 a 1980:
1940 19.000 habitantes
1950 53.000 habitantes
1960 150.000 habitantes
1980 700.000 habitantes
1998 1 milhão
2006 (estimativa em julho) 1.220,412 habitantes
Dados Populacionais da Cidade de Goiânia (1940-2006)
Fonte: IBGE (2007)
Projetada para ter 50.000 habitantes, a população de Goiânia
cresceu rapidamente, unindo-se a Campinas, que dela estava separada
por 6 km. Campinas tornou-se um bairro de Goiânia, como muitos
outros que foram surgindo (Machado et al, 2003).
Tornando-se “Patrimônio”
No ano de 2002, Goiânia é alvo de um processo de tombamento
Federal de seu Núcleo Pioneiro juntamente com edifícios públicos e
componentes Art Decó (IPHAN, 2002). O Estilo Art Déco foi lançando
oficialmente em 1925, em Paris. A arquitetura é marcada por volumetria
geométrica, simétrica e imponente, com ornamentação e, portanto,
muitos elementos decorativos. No Brasil, foi amplamente difundido no
período do Estado Novo, tendo como exemplo típico a torre do relógio
da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, e quase todas os edifícios dos
Correios espalhados pelo país construídos nessa época. Em Goiânia, o
estilo foi adotado nos principais prédios públicos.
O processo de tombamento do conjunto de elementos Déco em
Goiânia foi conduzindo por várias instituições e atores sociais, liderados
pelo IPHAN regional, movidos pelo sucesso de um processo anterior,
que culminou na declaração da cidade de Goiás como patrimônio da
Humanidade pela Unesco. Novamente as duas cidades são coladas no
262
ILHA
Revista de Antropologia
Manuel Ferreira Lima Filho
imaginário e nas ações políticas do Estado Brasileiro. Se antes Goiânia
nasce como um ato de rompimento da Cidade de Goiás (1933), agora
(une-se) nutre-se da experiência bem sucedida do processo do
tombamento de Goiás para reivindicar e ver também bem sucedido a
nomeação de um status patrimonial em âmbito nacional (2002). É
como se os vetores do tempo se unissem novamente pela categoria
excepcionalidade: uma pelo casario colonial, outra pelos seus
componentes Art Déco.1
O processo do tombamento de Goiânia colocou em pauta o
patrimônio cultural da cidade e indagações sobre os significados desse
tombamento nas representações sociais que os pioneiros e habitantes
da cidade tinham sobre ela. Embora seja uma cidade relativamente
nova (73 anos) a questão do “centro histórico” assim como toda a
cidade, tem sido objeto de quatro planos urbanos que defendiam
estratégias, instituíam concursos públicos de requalificação do núcleo
histórico e de fachadas dos prédios, além de demandas de associações
junto à prefeitura. Atualmente, um quinto plano tramita na Câmara
Municipal (Silva, 2006).
O processo de tombamento também institui uma “memória
oficial”, e Goiânia se “torna” colecionada, classificada, indexada, padronizada,
enfim, musealizada. Se o processo de tombamento do
conjunto de vinte e dois elementos e prédios públicos considerados
representativos do estilo Art Déco coloca a cidade positivamente no
cenário nacional e internacional, pode, por outro lado, induzir A um
processo identitário redutor.
Se o processo de tombamento pode ser visto como uma ação
naturalizada do IPHAN, numa esteira de tradição do órgão, desde os
tempos de Rodrigo Mello Franco, amparada por um direito positivista
de nossa legislação, as pesquisas, tanto do ponto de vista da arquitetura
quanto da antropologia, apontam, inequivocadamente, para o
fato de que a Art Déco está longe de ser uma expressão de penetração
no imaginário da cidade. Ela deve se compreendida apenas como uma
ação legitima e normativa do IPHAN aos aspectos inerentes ao processo
de tombamento, proteção e divulgação e até mesmo de valorização de
uma, entre várias formas arquitetônicas, que registrou uma concepção
de morar, representar idéias e transmitir valores. E assim, o Art Déco
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ILHA
Revista de Antropologia
Goiânia: uma cidade patrimonial?
não pode ser utilizado como um ícone totalizador da identidade da
cidade.
Se o Art Deco é uma das formas arquitetônicas da cidade que
remete a um tempo social e político, notadamente da política de Vargas,
quais são as outras formas temporais e sociais que poderiam desenhar
o mosaico de formas e tempos sociais de Goiânia ?
A Rua 20 como Rito de Passagem
Podemos pensar que na perspectiva da literatura nacional e regional,
os grandes espaços do cerrado do estado de Goiás na década de
1930 e 1940 se identificam com uma categoria do pensamento social
brasileiro denominada de sertão. Grandes espaços, gado a esmo, natureza
indomável, casebres, atraso, isolamento. Nesse sentido, podemos
pensar que o movimento de deslocamento da capital do Estado da cidade
de Goiás para as proximidades de Campinas (hoje um bairro de Goiânia)
é um deslocamento no “sertão” na perspectiva que Vidal e Souza (1997)
denominou de “crescer para dentro” na esteira da construção de uma
nacionalidade colocada em prática pelos que marcharam para o oeste,
como analisei em outro trabalho entre os pioneiros da Marcha para o
Oeste (Lima Filho, 2001). Assim, nas próprias narrativas dos primeiros
habitantes de Goiânia, o cenário era de sertão, um mundo mágico: a
paisagem, as impressões e representações da natureza a ser domesticada,
matas, bichos, forças incontroláveis da natureza, vastidão, vazio como
nos mostra Da. Armênia:
Não havia água, nem energia elétrica ainda. (...) Para preparar as refeições
de nossa filha, usávamos uma pequena fogueira, do lado de fora do prédio.
Não se encontrava um fogareiro. (...) até vir de Goiás um fogareiro de
álcool. Na época, convivíamos em Goiânia com pequenos animais que
viviam na periferia das matas, como coelhos, iaras, gatos do mato, (...)
sagüis, tatus etc. Naquele mundo mágico, o vigia noturno do Grande
Hotel caçava coelho e tatu-galinha (...) Aranhas caranguejeiras entravam
livremente pelas portas de fora (...) A tempestades de Goiânia (...) eram
realmente impressionantes! Na vasta campina aberta, ainda quase vazia
o vento campeava solto, adquirindo uma força e velocidade incontroláveis
(...) Caiam raios em todas as direções (...) com a força que adquiria
começava a levantar folhas, papéis, galhos secos e por fim já era uma
ameaça terrível para as pessoas (...) ai de quem cruzasse sua rota; era
arrastado, rodopiado (...) lançado de encontro aos muros ou cercas de
arame farpado. A população temia-os (...) Misto de cidade e sertão (Souza,
1989: 25-28 e 51).
264
ILHA
Revista de Antropologia
Manuel Ferreira Lima Filho
Foto 02: Rua
20. Antônio Pereira
da Silva. Déc. 1940.
Goiânia. Acervo
MIS-GO.
Este ambiente narrado como sertão era um estado “cru”, pensado
por Lévi Strauss. A instalação da “civilização” era o inicio do processo
do “cozimento” da transformação da natureza para a cultura.
Contudo, numa perspectiva etnográfica, os primeiros habitantes de
Goiânia não eram sertanejos. Eram pessoas, provenientes do interior de
Goiás e de Minas Gerais, principalmente. A primeira leva de moradores
da antiga capital, funcionários públicos, professores, administradores,
profissionais liberais e, de modo expressivo, operários que vieram para a
construção dos prédios públicos, notadamente em estilo Art Déco.
Juntamente com o conjunto desses edifícios públicos, que mais tarde
seriam tombados pelo IPHAN, o governo construiu uma série de casas
padrão onde funcionou o palácio do governo estadual, a faculdade de
Direito, o conservatório de música e como residências para os funcionários
que chegavam da antiga capital. Mais tarde, essas casas foram vendidas,
como registrou Monteiro (1938: 151):
Os primeiros prédios concluídos foram os dez destinados aos funcionários
e ao Jardim de Infância. Os dez prédios foram construídos na rua 20. Foi
essa a primeira rua de Goiânia. Nela foram instalados provisoriamente o
Palácio, a Secretaria Geral, o Escritório Central de Obras e a Diretoria
Geral da Fazenda, que por ser muito grande, teve que ocupar duas casas,
sendo uma para Seção de Terras. Uma das novas casas foi destinada à
residência do governador Dr. Pedro Ludovico Teixeira. Outra serviu de
residência ao Dr. Câmara Filho, direto do Departamento de Propaganda
e Expansão Econômica (...) Numa, foi residir o Dr. Sólon de Almeida
Superintendente do Departamento de Propaganda e venda de lotes.
Noutra residiu o Dr. Germano o Roriz até fins de 1935 quando (...) passou
[para]o Diretor Geral e Segurança Publicas Dr. João Monteiro. (Monteiro,
1938:151)
265
ILHA
Revista de Antropologia
Goiânia: uma cidade patrimonial?
Mas enquanto essas casas estavam sendo construídas, naquela
que seria considerada oficialmente a primeira rua de Goiânia, denominada
RUA 20, os primeiros habitantes, de fato, fizeram suas casas
de pau a pique e palha às margens do córrego Botafogo, fonte de água
potável. Ai foi instalada a pensão da Dona Maruca, onde todos se
encontravam. Nas margens do mesmo córrego, banheiros públicos
foram construídos e o lugar era fonte de água potável. Nesse primeiro
momento de ocupação havia, portanto, uma identificação com o mundo
rural, muito próximo da visão de mundo dos lugares de onde vieram:
pequenos animais silvestres, árvores frutíferas do cerrado, peixes,
banhos de córrego, noites estreladas enfim uma paisagem bucólica
embora “selvagem”.
Não havia água encanada. Então, as casas foram feitas com fundo, o
quintal, digamos assim, a terminação do quintal passava no córrego
Botafogo. Ai fizeram dois banheiros, forçaram... eles construíram uma
qued´água que tinha o banheiro das mulheres e depois mais para cima
dos homens (Entrevista com Da. Nize de Freitas 19/09/2006)
Foto 03: Rua 20. Eduardo Bilemjian. Déc. 1930. Goiânia. Acervo MIS-GO.
A Rua 20, em construção, foi traçada de forma paralela ao córrego
Botafogo. Entre a Rua 20 e o Córrego Botafogo se formou mais
espontaneamente a Rua 24, caracterizada por residências, embora essa
rua tenha sido marcada pelo lugar, sob uma Moreira, escolhido por
266
ILHA
Revista de Antropologia
Manuel Ferreira Lima Filho
Pedro Ludovico para assinar seus primeiros atos administrativos na
capital. Apenas mais tarde, passou a administrar do “palacinho” da
Rua 20. A importância dessa árvore no imaginário dos depoentes, lhe
dá um lugar de destaque nas memórias dos primeiros dias da nova
cidade como é o caso da Dona Virginia Pereira Mendes que em suas
reminiscências conversa com a velha árvore:
Tenho muita recordação de tudo que passou. Tenho a impressão que
você deve estar pertinho dos 80 ou 90 anos de existência. Deus te
abençoes pelo que tivesses, pois quantos anos faz que debaixo de suas
sombras durante o dia e a noite o repouso de um sono tranqüilo. Todos
que te procuram foram recebidos com muita bondade e carinho. Que
lindo destino foi o seu minha bela Gameleira [Moreira]. No dia que
você nasceu, talvez estivesse imaginado que ira ficar bem solitária, bem
sozinha, nesse imenso planalto. Mas o seu destino já estava reservado,
você teria que dar acolhida para todas aquelas famílias que estavam
migrando para essa bela capital. Assim, passaram muitos por debaixo
de sua sombra. (Virgínia Pereira Mendes, (01/11/2005).
Desta maneira, podemos dizer que a Rua 20 era um primeiro
ponto oficial, após todos passarem pelas sombras da velha Amoreira
bem próxima do Córrego Botafogo. O primeiro rito. Era, pois, um tipo
de batismo para quem viesse morar na nova capital. Depois havia o
rito oficial mesmo, de se abrigar na casas da Rua 20. Era uma rua
transitória, mas necessária. Nela, estavam concentrados valores
considerados importantes: a igreja (na Rua 20 morava o Bispo) e ao
lado foi construída a catedral de Goiânia, o Palácio do Governo, a
faculdade de Direito e Conservatório de Música, o Jardim de Infância
entre outros. Portanto, morar na rua 20 era morar perto do poder e do
prestígio. Entretanto, à medida em que a cidade crescia, aos poucos
essa função de liminaridade foi se perdendo. Com a construção do
Setor Sul, durante muitos anos considerado o setor nobre da cidade,
alguns moradores de maior poder aquisitivo construiriam suas casas
nele. Os funcionários e servidores foram também se distribuindo por
outros bairros da cidade, como o Bairro Popular, o Setor dos
Funcionários, o Setor Fama. Alguns moradores, como o advogado e
ex-professor do curso de Direto, Pereira Zeka, permaneceram na mesma
casa construída na década de 40, que seu sogro comprara do Estado.
Os mais pobres continuaram às margens do Córrego Botafogo, e até
267
ILHA
Revista de Antropologia
Goiânia: uma cidade patrimonial?
tarde seria uma grande favela, e depois se transformar no Setor
Universitário, onde hoje se encontram as primeiras edificações das
Universidades Federal e Católica de Goiás.
Observa-se, dessa maneira, que a cidade nasceu elitizada, na divisão
de seus espaços urbanos para além de qualquer boa intenção de
seus urbanistas e planejadores. Analisando as narrativas dos pioneiros,
categoria ampla, mas com quem identificamos a primeira e segunda
geração que viram a cidade nascer e crescer, moradores das primeiras
ruas e bairros ou mesmo filhos de políticos e funcionários de alto escalão
na época, têm-se a convergência de dados de que a cidade era dividida
em três áreas: 1) O manto de Nossa Senhora composto pelas avenidas
Araguaia, Tocantins e Paranaíba e Praça Cívica. As margens do Córrego
Botafogo e por último a região Norte depois da Estrada de Ferro e da
Avenida Paranaíba que era asfaltada. Pelo mapa tem-se uma noção desses
espaços. Divisão que fica clara no depoimento da filha do primeiro
prefeito Venerando de Freitas Borges, que nasceu na cidade antes mesmo
de seu batismo cultural em 1942.
Nos anos Dourados, nos anos 50 nós dizíamos assim: Goiânia
esta dividida, da Av. Paranaíba para cima, que o Palácio, era a nata da
sociedade que morava, da Av. Paranaíba, era a classe média baixa.
Então, as pessoas tinham essa rivalidade. Então você queria falar alguma
coisa assim, negativa de alguém, Ah fulano é... não é do lado
Sul. Ela mora além da Avenida Paranaíba. A Avenida Paranaíba era
um divisor, um divisor entre as classe sociais e até hoje isso existe.
Você mora onde? Ah no bairro do buraco? Sempre existiu. E Botafogo,
ali eram invasores, eram lavradores, empregadas domesticas.... ( Nize
de Freitas, 19/09/2006).
Reflexões patrimoniais na perspectiva antropológica
Quando se olha a questão patrimonial pela perspectiva antropológica,
percebemos algumas caminhos que desenham uma tensão com
relação ao tema da preservação, portanto do tombamento, do conceito
antropológico de identidade e do próprio processo inerente a
constituição e mobilidade das formas urbanas e seu dinâmico processo.
Poderíamos também associar com a idéia da Teoria do Conflito de
George Simmel nas diferentes formas de viver o urbano.2
268
ILHA
Revista de Antropologia
Manuel Ferreira Lima Filho
A experiência de uma antropologia na cidade de Goiânia (Lima
Filho, 2004) provocou um jogo de espelhos desses conceitos e das
narrativas relacionadas a eles, seja pelos entrevistados, seja pelos representantes
de políticas públicas, seja pelo próprio discurso antropológico.
Num primeiro momento, fica claro que a representatividade do
conjunto de Are Déco, como representante de um tempo áureo do início
da cidade, não tem correspondência direta com as narrativas do mesmo
período em que tais prédios públicos foram construídos. Típicamente
frutos de uma ação governista da Era Vargas, eles representam um
estilo arquitetônico em voga no período da década de 30, 40 e já tardio
como no caso da estação ferroviária da cidade nos anos 50. Estilo tão
diferente do olhar dos goianos que a filha do primeiro prefeito, Nize
de Freitas, perguntou ao pai o por quê daquela forma engraçada do
Cine Teatro Goiânia, ao que ele respondeu “Observa bem minha filha,
o teatro Goiânia é uma galera, observa bem que o formato dele é de
uma galera” e Dona Nize arremata: “ou seja, ele foi inspirado numa
galera egípcia”. Uma galera egípcia em pleno Planalto Central!
Considerado excepcional pelo IPHAN, o Teatro de Goaânia
ganhou o status de proteção federal. Goiânia entrou, assim, em 2001,
no seleto circulo de bens patrimoniais tombados pela União, fazendo
Foto 4 – Mapa de Goiânia (1937) por Attílio Corrêa Lima
Fonte: DAHER (2003).
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ILHA
Revista de Antropologia
Goiânia: uma cidade patrimonial?
jus à atuação do órgão federal que foi instituído pela mesma lei que
criou o tombamento. Como já analisei, Goiânia se equivale à cidade
de Goiás nessa ciranda patrimonial do tempo.
As tensões que resistem como consequência disso, do ponto de
vista antropológico são, basicamente, duas. Primeiro, o estilo, como já
afirmou Metran (2006), não tem permeabilidade na concepção de
morar da população goianiense. Nem mesmo as “casas tipo” do inicio
da cidade, construídas pelo governo estadual, têm a Art Déco como
preponderante. Notam-se elementos desse estilo em algumas casas e
sobrados. Registra-se aqui a resistência cultural por detrás do discurso
e da práxis ideológica e de modernização de Pedro Ludovico e sua
equipe. Como vimos, a mudança provocou um movimento de
resistência na cidade de Goiás. Vencidos pelas mãos fortes de Getúlio
Vargas e de Pedro Ludovico, os vilaboenses quase se transfiguram na
constituição de futuros goianienses. Como que numa atitude tácita,
os descendentes dessa geração mães elegem, ao longo do desenvolvimento
da cidade, o estilo neocolonial como preferido. O estilo é
inspirado no passado e se caracteriza por largos beirais de madeiramento
aparente, recortados, frontões curvos como das igrejas
oitocentistas, vergas de arcos entre outros elementos. Em outras
palavras, os goianienses se rendem ao novo, porém não “abrem mão”
do velho. É só passear pela cidade. Portanto, aqui reside o contraponto.
O que se tombou foi o que o governo elegeu, no passado e no presente,
e não as pessoas, as famílias, as memórias. Disso decorre a questão:
não seria o neocolonial alvo de atenção de tombamento federal,
amparado pela legitimidade de seus moradores? A resposta parece ser
não, do ponto de vista da lei do tombamento, uma vez, contaminada
pelo hibridismo de formas, o neocolonial de Goiânia se distancia muito
do ideal de excepcionalidade. Para isso, o Colonial de Goiás já foi
tombado, poderiam alegar alguns. Contudo, do ponto de vista
antropológico, a negação é constrangedora, pois revela uma distancia
entre aquilo que é concebido como referências culturais e aquilo que é
eleito pelo Estado. Afinal, as culturas não são dinâmicas e híbridas
como quer Barth (1968) e Canclini (2003)? Ou ainda como questiona
Eckert (2002: 78).
270
ILHA
Revista de Antropologia
Manuel Ferreira Lima Filho
“Quem são os guardiões da memória celebrada pelo Estado e divulgada
pelos meios de comunicação de massa ? E quem são os herdeiros dessa
memória ? Estaremos, hoje conformados à memória seletiva de um
discurso oficial ou, estamos ao contrário (...) atentos aos fatores
aglutinantes apreendidos num processo de emancipação do sujeito e
coletivização do conhecimento histórico” ?
O jurista Frederico Marés esclarece que qualquer cidadão ao ver
suas referências culturais ameaçadas, mesmo que coletivas, pode entrar
com pedido de tombamento na justiça (Mares, 1986:23).
Daí formula-se a questão inevitável e provocadora: afinal, para
que serve o tombamento? Ouro Preto foi conservada porque foi tombada
ou porque foi esquecida no tempo, conservando um passado
(Gonçalves, 2001) que só mais tarde seria resgatado como ícone
patrimonial dos tempos modernos? Esse mal-estar na cultura, ou em
nossos arquétipos patrimoniais, para lembrarmos de Freud ou Jung,
talvez possa ser amenizado com a compensação do registro imaterial,
que, aliás, também resvala na armadilha fácil do excepcional. Assim,
podemos concluir que, do ponto de vista conceitual, tanto o
Tombamento quanto o Registro Imaterial são males patrimoniais
necessários, mas insolúveis na dinâmica das culturas.
A segunda questão conceitual que se coloca está diretamente relacionada
à idéia da preservação, tão cara na trajetória brasileira de
construção de uma identidade nacional, de nossas políticas patrimoniais
e que se impregna em nós como se o apego ao passado fosse uma
remissão pelo peso incômodo do atraso, da pobreza, do sertão, da
fatalidade histórica tão retoricamente ensaiada pelo nossos pensadores
da passagem do século XIX e inicio do século XX e tão obsessivamente
colocada em marcha por nossos estadistas e governos. Assim, faz sentido
o que Eckert e Rocha chamam de cidade-ruína que “é a expressão do
conjunto de intenções e de comportamento do homem brasileiro diante
do tempo” (...) “os habitantes valorizam o presente reformulando o
passado” (Eckert e Rocha, 2005: 24).
Nesse vai-e-vem temporal, o movimento que impulsiona para a
modernidade, rompe com o passado, destrói os patrimônios, tornam
inóspitas as relações sociais, individualiza o que foi marcadamente holista
por excelência. A volta ao passado parece querer ressemantizar e fazer
271
ILHA
Revista de Antropologia
Goiânia: uma cidade patrimonial?
marcar o passado no presente: é preciso proteger, contaminar-se de um
passado que nós mesmos destruímos, daí a busca por objetos, coleções,
ruínas. Talvez daí se compreenda uma ambigüidade nas narrativas
patrimoniais do homem urbano, como elucida a voz de um dos pioneiros
entrevistados, que nos disse que mudou radicalmente a parte frontal de
sua casa da Rua 20, uma das primeiras de Goiânia, devido à noticia que
correu de que o Estado iria tombar sua casa, “fiz um pecado patrimonial”
nas palavras dele. No entanto, a parte interna continua intacta. Mas
seu filho adiantou e sentenciou “tem que mudar mesmo, professor, faz
parte da modernização”. Portanto, a contraposição de uma proteção por
proteção sem convencimento ou algo que valha ou que faça sentido é
pura fumaça de retóricas para amenizar nossas sangrias patrimoniais e,
diria, existenciais. Como pensou Lefebvre (2004: 112) o fenômeno
urbano é ao mesmo tempo simultâneo e cumulativo. Simultâneo porque
é ponto de convergências dispares, memórias cruzadas, camadas do
passado, como num corte estratigráfico revela a erosão do tempo,
marcando a ausência, mas ao mesmo tempo demarcando o que ficou.
Cumulativo, pois demonstra vários conteúdos, culturas, técnicas, estilos,
formas urbanas, eu acrescentaria. Daí a coexistência, em uma mesma
casa o quase sentimento de culpa do morador já idoso e o rompimento
o filho, de outra geração, mas que sabe de cór o nome de todos os
vizinhos pioneiros e que demonstrou “controle de impressões” nesse
vis à vis com o antropólogo, numa situação de campo.
Entendo assim que a proteção ou a destruição fazem parte de um
jogo de poder, de controle de impressões e retóricas e de constituição
de personas políticas físicas ou jurídicas. É por isso que na Rua 20 se
encontram fragmentos de um passado representado pelos casarões
como a Casa de Colemar Natal e Silva, Pereira Zeka, a casa eclética dos
Sabino, a casa estilo normando de Helio Naves e aqui e acolá os brisessoleil
e traços retos das casas modernistas. Além disso, tem-se os
edifícios que colocaram abaixo a antiga Cúria e a Casa do Bispo, o
Palacinho de Pedro Ludovico e tantas outras. A Rua 20 é por excelência,
a metamorfose da cidade. Daí sua fisionomia tão distante de qualquer
intenção de tombamento federal ou de qualquer atitude patrimonial
272
ILHA
Revista de Antropologia
Manuel Ferreira Lima Filho
dos poderes estadual (que se restringiu a tombar uma casa tipo) e
municipal. O passado agoniza nos estacionamentos da cidade, que
quase tem um carro por cidadão habilitado. E assim, para lembrarmos
Sahlins, poderia dizer que o tombamento esse mito de origem de pensar
patrimonial brasileiro implode nos eventos históricos da cidade que
se transfigura. Mas como qualquer bom mito, suas estruturas arcaicas
permanecem apesar do roer do tempo, e assim, de vez em quando sua
eficácia tece as narrativas e ações concatenadas. E como não poderia
deixar de ser o rito acontece para reificar o mito. Não foi assim com o
tombamento do Art Déco em Goiânia e suas narrativas?
Notas
1 Sobre as questões históricas, ideológicas e de poder identificando os movimentos
políticos e históricos sobre as cidades de Goiás e Goiânia ver o
meu artigo” O Futuro do Passado da cidade de Goiás: gestão, memória e
identidade” (2003).
2 Ver Ekert (2002).
Referências Bibliográficas
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Boston: Litle Brown Company, 1969.
CANCLINI, Nestor Garcia.Culturas Híbridas. São Paulo: EDUSP. 2003.
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ECKERT, Cornelia. “O que não esquecemos ? Tudo aquilo que temos razões para
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quarta-feira, 25 de setembro de 2013
História e desenho
História e desenho
(mais uma opção de
linguagem em sala de aula)
Lázara Alzira de
Freitas
Várias linguagens podem se
utilizadas em sala de aula, para tirar o professor do estado de ilha, fazendo-o
voltar a se sentir, parte integrante de um processo que tem por finalidade o
ensino e a aprendizagem.
Entre essas linguagens temos:
literatura, cinema, arte, músicas, desenhos animados e outras.
Vamos nos ater neste momento na
linguagem áudio e visual através do desenho animado.
Lembrando de relacionar o contudo
ao tema trabalhado com o desenho proposto.
- Bob esponja: episódio: o hambúrguer
de siri – trabalha uma exploração por parte do patrão. Seu Siriqueijo, o qual
impõe uma série de regras para um funcionário exemplar que vão além das
obrigações do mesmo e mostra o dia a dia do trabalhador bob esponja.
- Pica pau: história do esporte
no episódio: aliança infantil – uma partida de beisebol a qual apresenta regras
e funções do esporte.
- Tom e Jerry: para se trabalhar
história e memória. No episódio: ah! O amor – apresenta uma constituição da
história através de uma narrativa do passado, apresentado pelo rato Jerry,
sobre uma desilusão amorosa do gato Tom.
- A turma da Mônica: para os
problemas sociais; no episódio Magali, mingau com chuva – mostra os problemas
enfrentados por uma cidade inundada pelas águas da chuva.
-Cavaleiros do Zodíaco – episódio
13 da saga do santuário; narra a luta de um cavaleiro para ganhar uma armadura,
e assim voltar a terra natal.
Não podemos nos esquecer de
apontar pontos de reflexão e relação entre atratividade e aprendizagem.
quarta-feira, 14 de agosto de 2013
cont.: Retratos Urbanos...
Continuação:
A crônica, é um gênero literário que, a despeito de
ter sido considerado, durante muito tempo, como um gênero menor, tem merecido
hoje a devida atenção por parte da crítica. Como afirma Antônio Cândido, não há
que esperar uma “literatura feita de grandes cronistas”, assim como tampouco se
“pensaria em atribuir um prêmio nobel a um cronista”. Entretanto, o
crítico reconhece que, na crônica, “tudo é vida, tudo é motivo de experiência e
reflexão, ou simplesmente de divertimento, de esquecimento momentâneo de nós
mesmos (...)”. E tudo porque “a crônica está sempre ajudando a
estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas (...)”, não
necessitando, para tal, de nenhum “cenário excelso”, já que a perspectiva do
cronista “não é a dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples rés do
chão”.
Nos termos de Cândido, mesmo sendo um gênero sem
grandes adjetivações, livre de vôos grandiloquentes, a crônica “pega o miúdo e
mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas”.
Assim, é de opinião que a crônica pode dizer coisas sérias sobre inúmeros
aspectos da vida. Por exemplo, na apresentação de uma simples conversa fiada.
Não é à toa que o crítico, no exato momento em que fala que a crônica perece
mesmo um “gênero menor”, sai-se com essa: “‘Graças a Deus’ – seria o caso de
dizer, porque sendo assim ela fica perto de nós”.
Entretanto, parece que alguns não compreenderam a
mensagem de Cândido. É o caso dos organizadores de História em cousas miúdas,
uma coletânea de textos produzidos, em sua maioria, por historiadores sociais
da cultura da UNICAMP. Não compreenderam, por exemplo, que o crítico, ao se
referir à crônica como um “gênero menor”, não é para desqualificá-la
literariamente e sim para valorizá-la. Inúmeros trechos no texto de Cândido
indicam essa valorização. Sendo “amiga da verdade e da poesia nas suas formas
mais simples e também nas suas formas mais fantásticas”, ainda que tenha
nascido despretensiosa e sem a pretensão de durar, a crônica, em íntimo
convívio com a palavra, cada vez mais leve, cada vez mais poética, já não
condiz com o viés argumentativo da crítica política dos primeiros tempos no
Brasil, quando de seu surgimento com a série “Ao correr da pena”, de José de
Alencar
Retratos Urbanos no Brasil: a crônica como fonte Histórica (segundo -Gervácio B. Aranha)
RETRATOS URBANOS
NO BRASIL:
A CRÔNICA COMO FONTE HISTÓRICA
Segundo Gervácio Batista Aranha, o
objetivo deste estudo é demonstrar que a crônica publicada nos jornais, que é lida
por uma multidão, numa época em que a imprensa não tinha concorrência como
veículo de comunicação de massa, constituiu uma fonte cada vez mais recorrente
por parte de historiadores preocupados com a emergência do urbano entre os
séculos XIX e XX, em especial no que se refere ao modo como os atores sociais
produziram, sentiram e representaram a vida cotidiana citadina. Assim, é
praticamente impossível focalizar o cotidiano de inúmeras cidades pelo Brasil
afora, no período estudado, sem passar pelos cronistas locais. Daí a
identificação de muitas delas com seus respectivos cronistas: o Rio, de Assis;
Bilac ou Lima Barreto, o Recife de Mario Sette, dentre outras.
De saída, uma advertência: a recorrência
aos cronistas urbanos implica certo crédito para com a perspectiva da
representação, aqui entendida como tentativa de tradução, no tempo presente, de
experiências do outro no tempo. Trata-se, por assim dizer, de uma noção de
representação que se pauta numa nova perspectiva mimética, haja vista tratar-se
de uma mímesis (O demônio da crítica: literatura e senso comum) que, a despeito
de não perder de vista o referente da linguagem, não é incompatível com a ideia
de criação. Até porque, dotado de cultura histórica peculiar ao seu próprio
presente, ele se debruça sobre as fontes disponíveis com perguntas que não
estavam na ordem do dia nas gerações anteriores.
O texto de Gervácio Batista Aranha
focaliza a crônica como uma espécie de sonda por excelência para a compreensão
da vida cotidiana, captada em seus ritmos e em suas ambiguidades, em que nada
escapa aos olhos curiosos desse eterno flâneur, o qual percebe desde os
populares que circulam nas ruas, becos ou avenidas, a exemplo de mendigos ou
prostitutas, até as últimas transformações da paisagem urbana, dentre outros
aspectos por ele observados -, para que, a partir dessa
matéria-prima, possa transformar, por meio de recursos literários, fatos brutos
do cotidiano em temas de leitura agradável.
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013
História e Linguagens
Uma belissima publicação sobre a liguagem cinematografica atual - vejam:
Publicado em Domingo, 27 Janeiro 2013
O historiador Luiz Felipe de Alencastro, autor de livros importantes, como o Trato dos Viventes, analisa as relações entre o filme de Spielberg e a política americana de ontem e hoje.
Lincoln, de Nabuco a Spielberg
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Desde o início das celebrações dos 150 anos da Guerra da Secessão em 2011, a mídia americana registra uma miríade de narrativas sobre o drama mais sangrento de sua história. O jornal "The New York Times", que em 1860 e 1864 apoiou as duas candidaturas de Abraham Lincoln (1809-65), criou um blog intitulado Disunion. Análises de eventos da Guerra Civil são feitas em opinionator.blogs.nytimes.com/category/disunion.
Para não se enredar em batalhas oitocentistas, o diretor Steven Spielberg deixou claro que não era historiador e que seu filme não pretendia retratar fielmente os fatos. Também tentou tomar distância da atualidade. Afirmou que trabalhava no projeto de "Lincoln" havia muitos anos e que o filme não fora lançado no ano passado para não interferir na campanha presidencial.
Pouco importa: a projeção de Lincoln nas telas americanas, europeias, asiáticas e brasileiras foi meticulosamente planejada para coincidir com o espetáculo planetário armado em torno da posse do presidente americano, Barack Obama, no seu segundo mandato.
Logo de saída, a primeira cena do filme sugere que a eleição de Obama concretiza o projeto igualitário idealizado por Lincoln. Na conversa do presidente com dois soldados negros em 1865, um deles diz que o fato de os brancos estarem vendo negros lutar nos regimentos da União abria grandes perspectivas: "Daqui a alguns anos teremos talvez capitães e tenentes negros; daqui a 50 anos, um coronel negro; daqui a 100 anos, o direito a voto...". O tom suspensivo da frase sugere a sequência não vocalizada, mas óbvia: "daqui a 150 anos, um presidente negro".
Com o filme em cartaz, o noticiário fundiu as imagens de Lincoln e Obama. Um florilégio de frases aproximando os dois presidentes pontuou os comentários da mídia americana na semana passada. Tony Kushner, o roteirista do longa-metragem, disse que o discurso de posse de Obama foi "lincolniano". Chris Matthews, da rede de TV MSNBC, abertamente favorável a Obama, preferiu um qualificativo menos usual --"lincolnesco". Um comentarista da CNN classificou a fala de Obama como o "terceiro discurso de posse de Lincoln".
GANCHOS
Na realidade, o filme está cheio de ganchos para se engatar na atualidade americana. Alguns ficam firmes, outros quebram ao serem mostrados. Pai de sete filhos, Spielberg vê os adolescentes passarem o dia vidrados num smartphone ou num tablet. Para transportar a relação entre Lincoln e seu filho Tad, que tinha 11 anos em 1865, ao cotidiano das famílias do seculo 21, o diretor bota na mão do garoto, como se fosse um iPad, os negativos de vidro de fotos da Guerra Civil.
Várias cenas mostram Tad mexendo nas fotos do seu "iPad", acentuando a inverossimilhança dos gestos. As salas dos telégrafos de Washington são filmadas como se fossem lan houses de cidade interiorana onde notícias da internet são debatidas pelos usuários.
Num plano mais geral, a trama se articula à atualidade política. A politicagem de Lincoln para concretizar o voto da 13ª Emenda à Constituição, que aboliu a escravidão, espelha-se nos conchavos do atual presidente para a aprovação do "Obamacare" --como é chamada a reforma do sistema de saúde que favorece os pobres e regula as empresas do setor-- e de outras reformas sociais.
A busca do entendimento entre os partidos Republicano e Democrata, o vaivém entre a Casa Branca e o Congresso faz a vida política de 1865 ficar parecida com a de 2010 em Washington.
Mas há outros pontos importantes no filme. Como notaram alguns comentaristas, o mérito de "Lincoln" consiste em situar a abolição da escravidão no centro da Guerra Civil. Parece óbvio, mas não é.
Em 2010, o governador da Virgínia, Bob McDonnell, publicou um manifesto celebrando os confederados e sua defesa das liberdades estaduais, sem mesmo mencionar a palavra escravidão. Mais ainda, o filme mostra que o escravismo era a base da identidade e da economia sulista.
Numa cena, o vice-presidente da Confederação, Alexander Stephens, diz a Lincoln que o fim da escravidão "extingue" a economia do Sul --e completa: "Todas as nossas tradições serão destruídas e nós não nos reconheceremos mais".
Lincoln, que era advogado, acreditava na tese do "slave power", no expansionismo da escravocracia. Para ele, o escravismo sulista, impulsionado pela decisão da Suprema Corte estabelecendo o primado do direito de propriedade sobre o direito à liberdade (caso Dred Scott versus Sandford, 1857), se espalharia pelos novos Estados do Oeste americano. Daí sua convicção de que era preciso abolir a escravidão definitivamente e prosseguir a guerra até a rendição incondicional dos confederados.
Em editorial de 5 de novembro de 1864, apoiando a reeleição de Lincoln, o "New York Times" diz que o candidato republicano "tem a absoluta confiança da imensa maioria favorável à supressão da escravidão pela força". Caso contrário, aliando-se aos escravocratas antilhanos e sul-americanos, o sistema tomaria conta das Américas. "Do Sul americano para a América do Sul", diz Lincoln para Thaddaeus Stevens, o abolicionista radical, na conversa dos dois na cozinha da Casa Branca.
Na verdade, ao contrário do que acontecia nos Estados Unidos, onde a escravidão era apenas regional, a escravocracia dominava todo o território brasileiro. Assim, o país era citado como exemplo pelos escravocratas americanos.
PROSPERIDADE
Um dos mais eficazes propagandistas da Confederação, o economista James DeBow (1820-67), escrevia em 1860: "O Brasil, cuja população de escravos equivale à nossa, é o único país da América do Sul que prosperou". A prosperidade brasileira parecia muito promissora porque já se sabia que estava solucionada a principal ameaça à escravocracia: a posse dos 750 mil africanos introduzidos depois de 1831 e ilegalmente escravizados desde então.
Em 1854, o então ministro da Justiça, Nabuco de Araújo, institucionalizou a doutrina vitoriosa dos escravocratas: a propriedade dos senhores desses africanos, e de seus descendentes, estava assegurada "por princípios de ordem pública e alta política anistiando esse passado [de ilegalidade] cuja liquidação fora difícil, cujo revolvimento fora uma crise". Em outras palavras, os 750 mil africanos e seus descendentes --que a lei de 1831 declarava indivíduos livres ilegalmente sequestrados por seus alegados proprietários-- passavam a ser escravos até morrer.
Em fevereiro de 1909, em Washington, onde era o embaixador brasileiro e representante da América Latina na cerimônia do centenário de nascimento de Lincoln, Joaquim Nabuco compara a abolição nos Estados Unidos e no Brasil. Para começar, reitera a tese do "slave power". Diz que o abolicionismo intransigente de Lincoln também salvou o Brasil. "Ninguém [...] poderia dizer o que teria sido o esforço pela abolição no Brasil se [...] uma nova e poderosa nação houvesse surgido na América [Confederada], tendo por bandeira a manutenção e a expansão da escravidão."
Em seguida, Joaquim Nabuco, renegando seus escritos abolicionistas, endossa o conchavo de seu pai, o ministro Nabuco de Araújo, e faz o elogio do jeito brasileiro de terminar com a escravidão: "Pudemos vencer a nossa causa [abolicionista] sem ter sido derramada uma só gota de sangue [...] conseguimo-lo num grande abraço de confraternidade nacional, e foram os proprietários de escravos, com a prodigalidade de suas cartas de manumissão, os que impulsionaram a ação das leis libertárias sucessivamente decretadas".
Nabuco reescreve a história do abolicionismo e dissimula a vitória da escravocracia no Brasil. Na conclusão de seu discurso, ele afirma: "Os ideais da geração dos anos 2000 não serão os mesmos dos da geração dos anos 1900". Porém, acrescenta: "A legenda de Lincoln avultará cada vez mais na sucessão dos séculos".
O Lincoln de Steven Spielberg mostra o que a geração dos americanos dos anos 2000 pensa da escravidão americana. Nossos manuais escolares podiam começar a mostrar o que pensam os brasileiros dos anos 2000: houve no Brasil uma guerra civil sem canhões nem baionetas, vencida pelos escravocratas.
O "grande abraço de confraternidade nacional" escravizou ilegalmente, de 1850 a 1888, duas gerações de negros e mulatos livres.
Publicado em Domingo, 27 Janeiro 2013
O historiador Luiz Felipe de Alencastro, autor de livros importantes, como o Trato dos Viventes, analisa as relações entre o filme de Spielberg e a política americana de ontem e hoje.
Lincoln, de Nabuco a Spielberg
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Desde o início das celebrações dos 150 anos da Guerra da Secessão em 2011, a mídia americana registra uma miríade de narrativas sobre o drama mais sangrento de sua história. O jornal "The New York Times", que em 1860 e 1864 apoiou as duas candidaturas de Abraham Lincoln (1809-65), criou um blog intitulado Disunion. Análises de eventos da Guerra Civil são feitas em opinionator.blogs.nytimes.com/category/disunion.
Para não se enredar em batalhas oitocentistas, o diretor Steven Spielberg deixou claro que não era historiador e que seu filme não pretendia retratar fielmente os fatos. Também tentou tomar distância da atualidade. Afirmou que trabalhava no projeto de "Lincoln" havia muitos anos e que o filme não fora lançado no ano passado para não interferir na campanha presidencial.
Pouco importa: a projeção de Lincoln nas telas americanas, europeias, asiáticas e brasileiras foi meticulosamente planejada para coincidir com o espetáculo planetário armado em torno da posse do presidente americano, Barack Obama, no seu segundo mandato.
Logo de saída, a primeira cena do filme sugere que a eleição de Obama concretiza o projeto igualitário idealizado por Lincoln. Na conversa do presidente com dois soldados negros em 1865, um deles diz que o fato de os brancos estarem vendo negros lutar nos regimentos da União abria grandes perspectivas: "Daqui a alguns anos teremos talvez capitães e tenentes negros; daqui a 50 anos, um coronel negro; daqui a 100 anos, o direito a voto...". O tom suspensivo da frase sugere a sequência não vocalizada, mas óbvia: "daqui a 150 anos, um presidente negro".
Com o filme em cartaz, o noticiário fundiu as imagens de Lincoln e Obama. Um florilégio de frases aproximando os dois presidentes pontuou os comentários da mídia americana na semana passada. Tony Kushner, o roteirista do longa-metragem, disse que o discurso de posse de Obama foi "lincolniano". Chris Matthews, da rede de TV MSNBC, abertamente favorável a Obama, preferiu um qualificativo menos usual --"lincolnesco". Um comentarista da CNN classificou a fala de Obama como o "terceiro discurso de posse de Lincoln".
GANCHOS
Na realidade, o filme está cheio de ganchos para se engatar na atualidade americana. Alguns ficam firmes, outros quebram ao serem mostrados. Pai de sete filhos, Spielberg vê os adolescentes passarem o dia vidrados num smartphone ou num tablet. Para transportar a relação entre Lincoln e seu filho Tad, que tinha 11 anos em 1865, ao cotidiano das famílias do seculo 21, o diretor bota na mão do garoto, como se fosse um iPad, os negativos de vidro de fotos da Guerra Civil.
Várias cenas mostram Tad mexendo nas fotos do seu "iPad", acentuando a inverossimilhança dos gestos. As salas dos telégrafos de Washington são filmadas como se fossem lan houses de cidade interiorana onde notícias da internet são debatidas pelos usuários.
Num plano mais geral, a trama se articula à atualidade política. A politicagem de Lincoln para concretizar o voto da 13ª Emenda à Constituição, que aboliu a escravidão, espelha-se nos conchavos do atual presidente para a aprovação do "Obamacare" --como é chamada a reforma do sistema de saúde que favorece os pobres e regula as empresas do setor-- e de outras reformas sociais.
A busca do entendimento entre os partidos Republicano e Democrata, o vaivém entre a Casa Branca e o Congresso faz a vida política de 1865 ficar parecida com a de 2010 em Washington.
Mas há outros pontos importantes no filme. Como notaram alguns comentaristas, o mérito de "Lincoln" consiste em situar a abolição da escravidão no centro da Guerra Civil. Parece óbvio, mas não é.
Em 2010, o governador da Virgínia, Bob McDonnell, publicou um manifesto celebrando os confederados e sua defesa das liberdades estaduais, sem mesmo mencionar a palavra escravidão. Mais ainda, o filme mostra que o escravismo era a base da identidade e da economia sulista.
Numa cena, o vice-presidente da Confederação, Alexander Stephens, diz a Lincoln que o fim da escravidão "extingue" a economia do Sul --e completa: "Todas as nossas tradições serão destruídas e nós não nos reconheceremos mais".
Lincoln, que era advogado, acreditava na tese do "slave power", no expansionismo da escravocracia. Para ele, o escravismo sulista, impulsionado pela decisão da Suprema Corte estabelecendo o primado do direito de propriedade sobre o direito à liberdade (caso Dred Scott versus Sandford, 1857), se espalharia pelos novos Estados do Oeste americano. Daí sua convicção de que era preciso abolir a escravidão definitivamente e prosseguir a guerra até a rendição incondicional dos confederados.
Em editorial de 5 de novembro de 1864, apoiando a reeleição de Lincoln, o "New York Times" diz que o candidato republicano "tem a absoluta confiança da imensa maioria favorável à supressão da escravidão pela força". Caso contrário, aliando-se aos escravocratas antilhanos e sul-americanos, o sistema tomaria conta das Américas. "Do Sul americano para a América do Sul", diz Lincoln para Thaddaeus Stevens, o abolicionista radical, na conversa dos dois na cozinha da Casa Branca.
Na verdade, ao contrário do que acontecia nos Estados Unidos, onde a escravidão era apenas regional, a escravocracia dominava todo o território brasileiro. Assim, o país era citado como exemplo pelos escravocratas americanos.
PROSPERIDADE
Um dos mais eficazes propagandistas da Confederação, o economista James DeBow (1820-67), escrevia em 1860: "O Brasil, cuja população de escravos equivale à nossa, é o único país da América do Sul que prosperou". A prosperidade brasileira parecia muito promissora porque já se sabia que estava solucionada a principal ameaça à escravocracia: a posse dos 750 mil africanos introduzidos depois de 1831 e ilegalmente escravizados desde então.
Em 1854, o então ministro da Justiça, Nabuco de Araújo, institucionalizou a doutrina vitoriosa dos escravocratas: a propriedade dos senhores desses africanos, e de seus descendentes, estava assegurada "por princípios de ordem pública e alta política anistiando esse passado [de ilegalidade] cuja liquidação fora difícil, cujo revolvimento fora uma crise". Em outras palavras, os 750 mil africanos e seus descendentes --que a lei de 1831 declarava indivíduos livres ilegalmente sequestrados por seus alegados proprietários-- passavam a ser escravos até morrer.
Em fevereiro de 1909, em Washington, onde era o embaixador brasileiro e representante da América Latina na cerimônia do centenário de nascimento de Lincoln, Joaquim Nabuco compara a abolição nos Estados Unidos e no Brasil. Para começar, reitera a tese do "slave power". Diz que o abolicionismo intransigente de Lincoln também salvou o Brasil. "Ninguém [...] poderia dizer o que teria sido o esforço pela abolição no Brasil se [...] uma nova e poderosa nação houvesse surgido na América [Confederada], tendo por bandeira a manutenção e a expansão da escravidão."
Em seguida, Joaquim Nabuco, renegando seus escritos abolicionistas, endossa o conchavo de seu pai, o ministro Nabuco de Araújo, e faz o elogio do jeito brasileiro de terminar com a escravidão: "Pudemos vencer a nossa causa [abolicionista] sem ter sido derramada uma só gota de sangue [...] conseguimo-lo num grande abraço de confraternidade nacional, e foram os proprietários de escravos, com a prodigalidade de suas cartas de manumissão, os que impulsionaram a ação das leis libertárias sucessivamente decretadas".
Nabuco reescreve a história do abolicionismo e dissimula a vitória da escravocracia no Brasil. Na conclusão de seu discurso, ele afirma: "Os ideais da geração dos anos 2000 não serão os mesmos dos da geração dos anos 1900". Porém, acrescenta: "A legenda de Lincoln avultará cada vez mais na sucessão dos séculos".
O Lincoln de Steven Spielberg mostra o que a geração dos americanos dos anos 2000 pensa da escravidão americana. Nossos manuais escolares podiam começar a mostrar o que pensam os brasileiros dos anos 2000: houve no Brasil uma guerra civil sem canhões nem baionetas, vencida pelos escravocratas.
O "grande abraço de confraternidade nacional" escravizou ilegalmente, de 1850 a 1888, duas gerações de negros e mulatos livres.
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