terça-feira, 19 de novembro de 2013

O Peregrino e o Convertido - segundo Hervieu Leger


O PEREGRINO E O CONVERTIDO

 

D.Hervieu Leger – é um dos nomes em destaque sobre a pesquisa do fenômeno religioso na modernidade, a memória e tradição religiosa.

A autora faz indagações sobre a desconstrução dos sistemas tradicionais de crença e singular mobilidade religiosa contemporânea.

Esta obra foi publicada em 1999 e trata-se de uma reflexão sobre os processos de construção e transmissão esclarecendo a dinâmica que anima a continuidade crente no final do séc.XX, ou seja, o processo de recomposição do imaginário religioso, num tempo marcado pela crise das instituições tradicionais e de sua gestão da memória autorizada.

O inicio do sec.XXI, vem “marcado pela difusão do crer individualista pela disjunção das crenças e das pertenças confessionais e pela diversificação das trajetórias percorridas por crentes passeadores.

Por um lado há a desregulação institucional da religiosidade e do outro lado a disseminação de novas formas de expressão religiosa de uma religiosidade flutuante ou de elaborações sincréticas inéditas. O livro divide-se em 6 capitulos.

No 1º- Religião despedaçada,  traz uma reflexão sobre a modernidade religiosa – buscando desenvolver a questão do paradoxo religioso nas sociedades seculares, em especial a crise de credibilidade dos sistemas religiosos e da emergência crescente de novas formas de crença.

As sociedades modernas não podem ser encaixadas numa perspectiva restrita de secularização, marcada pela idéia da privação social e cultural da religião.

O que caracteriza o tempo atual não é a mera indiferença com respeito a crença, mas a perda de sua regulamentação por parte das instituições tradicionais produtora de sentido.

O que ocorre é uma “bricolagem de crenças”, uma individualização e liberdade na dinâmica de construção dos sistemas de fé. “As crenças se disseminam”. Conformam-se cada vez menos aos modelos estabelecidos. Comandam cada vez menos as práticas controladas pelas instituições. Torna-se comum a presença de crentes que se afirmam sem a adesão precisa a uma instituição particular. E esta proliferação de crenças que marca o cenário contemporâneo acaba por refletir a necessidade sentida pelos indivíduos de recomporem o universo de sentido que eles menos sentem escapar de suas mãos numa modernidade intransparente.

O cap. 2 – Fim das identidades religiosas herdadas – a autora trabalha como acontece a transmissão das identidades religiosas entre as gerações em um contexto nebuloso.

Com base na reflexão de Halbwachs, Hervieu Leger aponta a importância da transmissão regular das instituições e valores como elemento fundamental para a continuidade e sobrevivência da sociedade. É no movimento de transição de uma geração para outra que a religião se firma no tempo. O que acontece na modernidade é um fenômeno complexo de “crise de transmissão” dessa “menos autorizada” que é a tradição. As sociedades modernas tendem a ser cada vez menos sociedade de memória, uma vez governadas pelo paradigma da imediatez.

Essa perda ou enfraquecimento de identidades herdadas vem acontecendo de forma crescente no âmbito da transmissão religiosa, os indivíduos constroem sua própria identidade sócio – religiosa a partir dos diversos recursos simbólicos colocados à sua disposição.

Tende a ocorrer uma nova escolha religiosa, com base nos recursos que os indivíduos vão encontrando pelo caminho ou se engrossa a fila dos que se definem como sem religião.

O que caracteriza a religiosidade das sociedades modernas é a dinâmica do movimento, mobilidade e dispersão de crenças.

nova dinâmica da mobilidade das pertenças, com a desterritorialização das comunidades com desregulação dos procedimentos da transmissão religiosa.

Substituindo o praticante, a modernidade favorece a emergência de 2 novas figuras: o peregrino e oconvertido.

No cap. 3 – movimento – Concentrando na figura do Peregrino – para a autora esse personagem enquadra-se na especificidade do religioso em movimento, sob qa influência dos percursos individuais (trajetórias de identificação religiosa e uma sociabilidade religiosa em plena expansão sob o signo da mobilidade e da associação temporária.

Seria uma mobilidade e confessionalidade fluida como a JMJ, tomando por exemplo a participação de 1997. Uma dinâmica de agregação e dispersão simbólica da universalidade católica.

Cap. 4 – O Convertido – expressa uma identidade religiosa no contexto de mobiludade da modernidade e é marcada pela escolha individual.

Desdobra-se em 3 modalidades:

1-    O individuo que mudaa de religião.

2-     O que se integra a uma tradição de forma inaugural.

3-     O que se re-afilia à mesma tradição religiosa.

Nesses diversos casos, a conversão é vivida como imersão num “1regime de intensidade religiosa”.

A emergência dessa nova figura é a expressão da desregulação institucional da modernidade, onde a identidade religiosa se firma como uma escolha.

Segundo a autora, em todas as formas de conversão, cristaliza-se um processo de individualização, que favorece o caráter que se tornou opcional de identificação religiosa e o desejo de uma vida reorganizada. Como um protesto contra a desordem do mundo.

Percebe-se que a insegurança e o pluralismo, provocam a reativação de identidades confe3xxionais e o desejo de inserção num regime intensivo de vida religiosa.

Cap. 5 – Comunidades sob o regime de individualismo religioso. Um claro exemplo vem na “nebulosa mística esotérica”, trata-se de uma religiosidade centrada no individuo e sua realização pessoal. Essa individualização compagina-se com o individualismo no campo religioso moderno ou seja é o “crer sem pertencer”; é um dos traços do tempo atual e presentifica-se na lógica de uma “bricolagem de fé”.

Há uma decomposição, sem recomposição ou seja, a afirmação de um regime subjetivo de verdade que dissolve toda forma de comunalisação religiosa.

Cap.6 – Instituições em crise e laicidade em pane – A Europa foi considerada em 1946 uma República laica. De lá para cá, vem havendo matrizes diferenciadas de uma laicização militante e comprometida, para uma laicidade de mediação.

Os embates com o Islâ (2ª religião na França) e as seitas vieram exigir um novo posicionamento da laicização.

Hervieu Leger vai na linha mediadora e acredita em uma decisiva atuação do estado na gestão e racionalização do debate em torno da delimitação do exercício de liberdade religiosa. O diálogo ganha significado especial e busca uma nova dinâmica entre as religiões.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

O que é religião?


O QUE É RELIGIÃO?

Segundo João Luis correia Junior – de Robert Crawford  (tradução de Gentil Avelino Titton), tem havido atualmente um maior interesse pelas diversas formas com que a religião se manifesta nesta sociedade plural, em que vivemos, fomentando o respeito e a simpatia para com pessoas que diferem em crenças.

Portanto este livro vem dissipar a idéia conflitante entre ciências e religião, além de refletir sobre 2 sistemas de crenças  influentes: o marxismo e o humanismo,  que  apresentam alternativas àquelas religiões que exigem dedicação e compromisso e oferecem às pessoas soluções para o sofrimento, a injustiça e a ignorância.

No 1º capitulo Robert Crawford problematiza o título, com a pergunta “é possível definir religião?” E para responder, são apresentados algumas definições; mas a questão fica aberta pois segundo Crawford, a essência do fenômeno religioso não aparece somente na compreensão dos seus efeitos na sociedade: “religião pode significar: ligar um adorador à divindade através da observância de cerimônias cúlticas e atos de devoção”.

No 2º capitulo, aparecem diversos métodos de estudo da religião, por meio das abordagens históricas, teológicas, filosóficas, psicológicas, sociológicas, fenomenológicas e feministas. Donde se conclui que nenhuma abordagem sozinha fornece uma visão completa da religião e de suas características. Mas todas devem ser levadas em consideração.

Nos capítulos de 3 a 8, o autor examina temas pertinentes a todas as religiões: os rituais, as escrituras, comportamentos, a mulher, a libertação e as divisões internas nas religiões. O autor possibilita comparar e contrapor os vários temas, ficando mais fácil detectar semelhanças entre as tradições religiosas estudadas, podendo se perceber qual a posição de 2 ou 3 religiões em relação a ele.

As diferentes temáticas são analisadas a partir de seis religiões que surgiram e estão presentes nos dias atuais, inclusive com forte influência cultural em vários continentes: as religiões semíticas (judaísmo, cristianismo e islamismo) e as indianas (hinduísmo, budismo e sikhismo).

Nos capítulos 9 a 15 são abordados questões que tocam a temática: por que as religiões não conseguem unir-se? No capitulo 9 – trabalha a questão (confessando um assassinato) e no 10 (o mundo foi planejado?) o 11- o que somos?; 12 – mente e cérebro; 13 – outros sistemas de crenças; 14 – a existência de Deus.

No capitulo 16, volta-se a questão inicial sobre a definição de religião, para em seguida, levantar-se algumas conjecturas sobre o “futuro das religiões” no cap. 17.

Resumidamente: O autor se debruça sobre o tema dos rituais, para estudar o que esta sendo venerado. E faz a partir das seis religiões já citadas. Ele observa que a maioria das religiões tem lugares e espaços sagrados, voltados especificamente para o culto, mas afirmam que Deus está presente em todo lugar, e na maneira de viver, não fazem separação entre sagrado e profano.

Observa a importância das escrituras Sagradas para a religião – como base para o culto, a doutrina e a tradição. O que importa não é o cumprimento de normas ou mandamentos, mas a condição interior do coração. Nas religiões semíticas o judaísmo considera os textos da Torá como Lei Santa, segundo as interpretações do Talmude. O cristianismo reconhece as escrituras judaicas (Torá, os Nibiim) profetas e os Ketubim – Escritos históricos e sapiências, interpretando os segundo ensinamentos de Jesus, aceito como o Messias prometido, cujas palavras e ações, escritas como evangelho, seria, “a boa noticia” do Reino de Deus. O islamismo venera o alcorão como palavra de Deus Alá, revelada em Maomé, são ’14 capitulos ou suras, que tratam da sabedoria e da doutrina, do conhecimento e do culto. Seu tema principal é a relação entre deus e seus fiéis.

Nas religiões Indianas não há um único Cânon (lista oficial), mas variados textos escritos ao longo de milhares de anos.

O autor vem trabalhando também o comportamento e formas de comportamento, e influencias de seus adeptos, em prol do bem comum.

Conclama o povo a ser santo como Deus (Lv.19,2). A boa conduta é mais importante que o ritual.Deixemos de fazer o mal e aprendamos a fazer o bem.

O cristianismo chama seus adeptos a ir além da lei: são chamados a receber o Espirito de Deus, do qual vem as virtudes éticas de amor, alegria, paz, paciência, benevolência...

Já o islamismo considera o jejum para o muçulmano poder compartilhar o sofrimento dos menos afortunados,a caridade é a expressão para com as pessoas necessitadas.

Das religiões Indianas, o

Hinduísmo é o que mais se aproxima de religião. Seu objetivo é obter firmeza, perdão, caridade, pureza, honestidade, controle, fidelidade e libertação da angustia. A atenção maior é conduta e não na crença.

O budismo defende que o eu é ilusório e deve ser substituído pelo amor e a benevolência.

O cap. Seis é voltado para a situação da mulher nas religiões. O autor conclui afirmando a importância da mulher nas religiões – o papel da mãe na formação dos filhos. Mas Crawford ressalta que embora as religiões idealizem a mulher, os homens suspeitam da sexualidade delas e temem que possam escapar ao controle e que apesar do protesto feminino,o patriarcado tem predominado.

Prosseguindo, vem sendo trabalhado a libertação – todas as religiões reconhecem ter algo de errado com o ser humano e oferecem propostas a salvação e libertar-se da ignorância – melhorar a vida aqui e chegar ao paraíso ou nirvana (plenificação em Deus dos que chegam a iluminação).

O autor vem fazendo uma retrospectiva para divisão da religiões, no cap. 8 e no 9 fala do porque as religiões não conseguem unir-se.

Há uma dificuldade de relacionamento. Já que apontam um mesmo Deus. A desunião nasce pela diversidade das crenças e falta de diálogo.

Do 10 ao 13, vem mostrando o impacto da ciências sobre a religião, e a conseqüência disso. O conhecimento científico substituindo a religião quando se trata de compreender a origem e evolução da raça humana.

O que somos e o que podemos nos tornar.  É proposto um debate entre mente e cérebro. O autor conclui que o ser humano pode ser um pouco inferior aos anjos, mas possui razão e criatividade,  busca sentido na vida, tem capacidade de fazer escolhas morais e é responsável diante de Deus. O valor do amor opõe-se ao mundo da sobrevivência dos mais fortes.

As religiões não negam que procedemos do pó da terra e que a evolução poderia ser a maneira encontrada pelo criador, para criar a humanidade, mas apontar para o imago (margem) de Deus que todos possuímos. Não há prova de que é assim mas é uma perspectiva que não pode ser menosprezada quando considerarmos o que somos e o que podemos vir a ser.

No 14 – Outros sistemas de crença – no sec. X desenvolveram alguns movimentos: cientologia, consciência de krishua, meninos de Deus, Povo de Jesus, Missão da Luz Divina, Meditação, transcedental e Igreja da Unificação. Nesses movimentos há uma rtendência ao panteísmo e ao politeísmo; alguns cultos caem sob a denominação de Nova era e trabalgam com mitos, xamanismo mensagens do além, cristais etc. São vgetarianos, considerados a terra como um ser vivo pessoal. Acreditam no sobrenatural, em alienígenas e no fim do mundo.

15 – trabalha a existência de Deus – debate entre os que crêem e os que não crêem.

Finalisando 16 e 17, haverá um retorno ao cap. 1. Concentram-se no aspecto funcional da religião.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Afinal, para que serve a História?


Afinal, para que serve a História?


O modo de se compreender o passado pode acontecer de diferentes formas.

No seu primeiro dia de aula, provavelmente na segunda fase do ensino fundamental, um professor de História entrou em sala para discutir a importância do estudo dessa matéria. Tal discussão, sem dúvida, é importante. Afinal, as questões e modos de se investigar o passado nessa nova fase do ensino passam a ser mais complexas e você, enquanto indivíduo em formação, já se mostra tentado a levantar algumas questões mais profundas sobre o que aconteceu no passado.

Sabemos que muitos por aí aprenderam que a História é importante para que não cometamos os mesmos erros do passado, para que tenhamos a oportunidade de organizar o agora e o porvir de modo mais seguro. Sob tal perspectiva, o estudo dos fatos consumados teria um valor estratégico. Em outras palavras, essa ideia sugere que a análise e a crítica do passado determinam o alcance de um futuro livre das mazelas que um dia nos afligiu.

De fato, ao observar esse tipo de uso para o passado, somos tentados a romantizar a História como ferramenta indispensável ao progresso. Contudo, seria mesmo correto dizer que a compreensão do passado garante verdadeiramente uma sociedade ou uma civilização mais aprimorada? Se assim fosse, toda a mazela que a Primeira Guerra Mundial trouxe para a Europa incutiria a “lição” de que uma Segunda Guerra Mundial não deveria acontecer. Mas não foi bem assim que as coisas se deram, não é?

Percebendo esse tipo de incoerência é que temos a chance de intuir que a História não tem essa missão salvadora de alertar ao homem sobre os erros que ele não pode cometer novamente. Na verdade, antes de acreditar que as sociedades e civilizações já cometeram um mesmo equívoco duas vezes, devemos entender que esses homens que são objetos de estudo do passado não pensam, sentem, acreditam ou sonham da mesma forma através dos dias, anos, décadas, séculos e milênios.

Sendo assim, a noção de progresso atribuída à História deve ser abandonada em favor de uma investigação dos valores, das relações sociais, conflitos e outros vestígios que nos mostram a transitoriedade e a mutação dos contextos em que os fatos históricos são consumados. É desse justo modo que passamos a entender que o homem e as sociedades que lutaram e sofreram na Primeira Guerra Mundial não são exatamente os mesmos que surgiram no cenário da Segunda Guerra Mundial.

Feita essa reflexão, não devemos chegar ao ponto de pensar que os contextos e períodos em que a História decorre são radicalmente distintos entre si. De uma época para outra, podemos notar que as sociedades não abandonam seu antigo modo de agir para incorporar uma postura completamente inovadora. Em cada período é necessário reconhecer as continuidades e descontinuidades que mostram a força que o passado possuiu enquanto referencial importante na formação dos indivíduos e das coletividades.

Ao realizar esses apontamentos, não devemos acreditar que o passado não passa de um jogo caótico controlado por jogadores (no caso, os homens) que não sabem definir suas próprias regras. Antes disso, é muito mais interessante notar que esse jogo tem feições múltiplas e que as formas de reconhecer a natureza de suas regras podem se transformar de acordo com a forma que olhamos para o passado.

Sendo assim, a investigação do passado se transforma em um grande debate em que cada interessado tem a oportunidade de mostrar uma riqueza inédita sobre um mesmo tema. Na medida em que isso acontece, não só temos a chance de pensar sobre aquilo que o homem já fez, mas também temos uma maneira curiosa, mesmo que seja pela completa diferença, de debater os nossos valores e questionar o agora com os “olhos” de nossos antepassados.

Por: Rainer Sousa.

Mestre em História

domingo, 29 de setembro de 2013

Goiânia ( segundo Manuel Ferreira Lima Filho)

ILHA


Revista de Antropologia

Goiânia: uma cidade patrimonial?

No Cerrado nasce Goiânia

A decisão de se construir Goiânia, uma nova capital para o

estado de Goiás, era a de que a velha capital, cidade de Goiás,

fundada em 1726, à margens do Rio Vermelho, não mais apresentava

condições geográficas e ambientais para o desenvolvimento

de uma capital de um Estado que tinha como principal meta romper

com a noção de atraso que o imaginário nacional tinha sobre ele.

Aliado a esse fato, registra-se a trama política coordenada pelo

interventor Pedro Ludovico Teixeira, com total apoio do presidente

Getulio Vargas, de enfraquecer o comando tradicional de velhas oligarquias

no Estado, notadamente a dos Caiado, deslocando a capital

de um espaço político e social liderados por alguns de seus representantes.

Nessa primeira onda bachelariana do tempo, Goiânia nasce

assim como ruptura, um vetor da cidade de Goiás. Suas primeiras

formas espaciais são pensadas nas pranchas dos urbanistas e projetistas.

Em 1933, sua pedra fundamental é lançada onde hoje é o poço do

elevador do Palácio das Esmeraldas, residência oficial do governador,

na praça central da cidade indicada por Attílio Correa Lima com um

pedaço de osso de uma ema diante de um cerrado aberto e plano

(Metran, 2006).

Essa ruptura espacial e temporal não foi tão pacífica assim. Houve

resistências, e a cidade de Goiás se dividiu. Mas o fato é que Goiânia

começa a ser construída em 1933. O poder legislativo e o executivo são

transferidos em 1937, e o batismo cultural da cidade aconteceu em

1942 com grande mobilização nacional.

Com os primeiros anos, algumas famílias da cidade de Goiás

mudaram para Goiânia, enquanto outras permanecem. E assim, separam-

se ritmos entre as cidades: Goiás se volta para continuar suas

formas de sociabilidade nascidas de uma passado colonial, com suas

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Revista de Antropologia

Manuel Ferreira Lima Filho

festas religiosas, seus alfenins, suas igrejas, seus artistas, sua elite,

álem de sua periferia profundamente identificadas com símbolos do

mundo rural. Não pára no tempo, mas segue seu próprio ritmo,

historicidades, sociabilidades e referências culturais e identitárias.

Goiânia, por sua vez, busca a velocidade da modernização, de cumprir

sua meta de metrópole no Planalto Central do Brasil, como um ensaio

experimental para a construção de Brasília anos depois, e, ao mesmo

tempo, inspirada na experiência de Belo Horizonte no final do século

XIX.

Foto 01: Praça do Coreto na cidade de Goiás, no ínicio do século XX

Fonte: Craveiro (1994)

O Plano urbanístico da nova cidade, concebido por Attílio Correa

Lima, de influência francesa, explorou a topografia do sítio, pois o

traçado proposto para o núcleo pioneiro de Goiânia favorecia a drenagem

por topografia, integrando as microbacias hidrográficas. Ele

procurou privilegiar o sistema viário com avenidas largas, sistemas de

estacionamento, beneficiando assim o comércio. Utilizou-se, então de

uma malha ortogonal. Para a zona industrial, nas imediações da estrada

de ferro concebeu desvios e uma estação de triagem. Para a zona

residencial o plano previa uma área tranqüila, distante do movimento

do centro. Reservou, em seus planos, grandes áreas verdes que visavam

a salubridade e a beleza. O plano por ele elaborado criava os setores

central, norte, sul, oeste e leste com delimitação espacial bem definida.

Com mão de obra recrutada do interior de Goiás e de outras regiões do

país construiu-se assim Goiânia. (Machado et al, 2003 e Silva, 2006).

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Goiânia: uma cidade patrimonial?

Mais tarde, outro urbanista, Armando de Godoy, de influência inglesa,

continua a projetar os primeiros traços da nova capital inspirado na

cidade jardim inglesa.

Podemos observar na tabela abaixo o crescimento demográfico

da cidade entre as décadas de 1940 a 1980:

1940 19.000 habitantes

1950 53.000 habitantes

1960 150.000 habitantes

1980 700.000 habitantes

1998 1 milhão

2006 (estimativa em julho) 1.220,412 habitantes

Dados Populacionais da Cidade de Goiânia (1940-2006)

Fonte: IBGE (2007)

Projetada para ter 50.000 habitantes, a população de Goiânia

cresceu rapidamente, unindo-se a Campinas, que dela estava separada

por 6 km. Campinas tornou-se um bairro de Goiânia, como muitos

outros que foram surgindo (Machado et al, 2003).

Tornando-se “Patrimônio”

No ano de 2002, Goiânia é alvo de um processo de tombamento

Federal de seu Núcleo Pioneiro juntamente com edifícios públicos e

componentes Art Decó (IPHAN, 2002). O Estilo Art Déco foi lançando

oficialmente em 1925, em Paris. A arquitetura é marcada por volumetria

geométrica, simétrica e imponente, com ornamentação e, portanto,

muitos elementos decorativos. No Brasil, foi amplamente difundido no

período do Estado Novo, tendo como exemplo típico a torre do relógio

da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, e quase todas os edifícios dos

Correios espalhados pelo país construídos nessa época. Em Goiânia, o

estilo foi adotado nos principais prédios públicos.

O processo de tombamento do conjunto de elementos Déco em

Goiânia foi conduzindo por várias instituições e atores sociais, liderados

pelo IPHAN regional, movidos pelo sucesso de um processo anterior,

que culminou na declaração da cidade de Goiás como patrimônio da

Humanidade pela Unesco. Novamente as duas cidades são coladas no

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Manuel Ferreira Lima Filho

imaginário e nas ações políticas do Estado Brasileiro. Se antes Goiânia

nasce como um ato de rompimento da Cidade de Goiás (1933), agora

(une-se) nutre-se da experiência bem sucedida do processo do

tombamento de Goiás para reivindicar e ver também bem sucedido a

nomeação de um status patrimonial em âmbito nacional (2002). É

como se os vetores do tempo se unissem novamente pela categoria

excepcionalidade: uma pelo casario colonial, outra pelos seus

componentes Art Déco.1

O processo do tombamento de Goiânia colocou em pauta o

patrimônio cultural da cidade e indagações sobre os significados desse

tombamento nas representações sociais que os pioneiros e habitantes

da cidade tinham sobre ela. Embora seja uma cidade relativamente

nova (73 anos) a questão do “centro histórico” assim como toda a

cidade, tem sido objeto de quatro planos urbanos que defendiam

estratégias, instituíam concursos públicos de requalificação do núcleo

histórico e de fachadas dos prédios, além de demandas de associações

junto à prefeitura. Atualmente, um quinto plano tramita na Câmara

Municipal (Silva, 2006).

O processo de tombamento também institui uma “memória

oficial”, e Goiânia se “torna” colecionada, classificada, indexada, padronizada,

enfim, musealizada. Se o processo de tombamento do

conjunto de vinte e dois elementos e prédios públicos considerados

representativos do estilo Art Déco coloca a cidade positivamente no

cenário nacional e internacional, pode, por outro lado, induzir A um

processo identitário redutor.

Se o processo de tombamento pode ser visto como uma ação

naturalizada do IPHAN, numa esteira de tradição do órgão, desde os

tempos de Rodrigo Mello Franco, amparada por um direito positivista

de nossa legislação, as pesquisas, tanto do ponto de vista da arquitetura

quanto da antropologia, apontam, inequivocadamente, para o

fato de que a Art Déco está longe de ser uma expressão de penetração

no imaginário da cidade. Ela deve se compreendida apenas como uma

ação legitima e normativa do IPHAN aos aspectos inerentes ao processo

de tombamento, proteção e divulgação e até mesmo de valorização de

uma, entre várias formas arquitetônicas, que registrou uma concepção

de morar, representar idéias e transmitir valores. E assim, o Art Déco

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ILHA

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Goiânia: uma cidade patrimonial?

não pode ser utilizado como um ícone totalizador da identidade da

cidade.

Se o Art Deco é uma das formas arquitetônicas da cidade que

remete a um tempo social e político, notadamente da política de Vargas,

quais são as outras formas temporais e sociais que poderiam desenhar

o mosaico de formas e tempos sociais de Goiânia ?

A Rua 20 como Rito de Passagem

Podemos pensar que na perspectiva da literatura nacional e regional,

os grandes espaços do cerrado do estado de Goiás na década de

1930 e 1940 se identificam com uma categoria do pensamento social

brasileiro denominada de sertão. Grandes espaços, gado a esmo, natureza

indomável, casebres, atraso, isolamento. Nesse sentido, podemos

pensar que o movimento de deslocamento da capital do Estado da cidade

de Goiás para as proximidades de Campinas (hoje um bairro de Goiânia)

é um deslocamento no “sertão” na perspectiva que Vidal e Souza (1997)

denominou de “crescer para dentro” na esteira da construção de uma

nacionalidade colocada em prática pelos que marcharam para o oeste,

como analisei em outro trabalho entre os pioneiros da Marcha para o

Oeste (Lima Filho, 2001). Assim, nas próprias narrativas dos primeiros

habitantes de Goiânia, o cenário era de sertão, um mundo mágico: a

paisagem, as impressões e representações da natureza a ser domesticada,

matas, bichos, forças incontroláveis da natureza, vastidão, vazio como

nos mostra Da. Armênia:

Não havia água, nem energia elétrica ainda. (...) Para preparar as refeições

de nossa filha, usávamos uma pequena fogueira, do lado de fora do prédio.

Não se encontrava um fogareiro. (...) até vir de Goiás um fogareiro de

álcool. Na época, convivíamos em Goiânia com pequenos animais que

viviam na periferia das matas, como coelhos, iaras, gatos do mato, (...)

sagüis, tatus etc. Naquele mundo mágico, o vigia noturno do Grande

Hotel caçava coelho e tatu-galinha (...) Aranhas caranguejeiras entravam

livremente pelas portas de fora (...) A tempestades de Goiânia (...) eram

realmente impressionantes! Na vasta campina aberta, ainda quase vazia

o vento campeava solto, adquirindo uma força e velocidade incontroláveis

(...) Caiam raios em todas as direções (...) com a força que adquiria

começava a levantar folhas, papéis, galhos secos e por fim já era uma

ameaça terrível para as pessoas (...) ai de quem cruzasse sua rota; era

arrastado, rodopiado (...) lançado de encontro aos muros ou cercas de

arame farpado. A população temia-os (...) Misto de cidade e sertão (Souza,

1989: 25-28 e 51).

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Foto 02: Rua

20. Antônio Pereira

da Silva. Déc. 1940.

Goiânia. Acervo

MIS-GO.

Este ambiente narrado como sertão era um estado “cru”, pensado

por Lévi Strauss. A instalação da “civilização” era o inicio do processo

do “cozimento” da transformação da natureza para a cultura.

Contudo, numa perspectiva etnográfica, os primeiros habitantes de

Goiânia não eram sertanejos. Eram pessoas, provenientes do interior de

Goiás e de Minas Gerais, principalmente. A primeira leva de moradores

da antiga capital, funcionários públicos, professores, administradores,

profissionais liberais e, de modo expressivo, operários que vieram para a

construção dos prédios públicos, notadamente em estilo Art Déco.

Juntamente com o conjunto desses edifícios públicos, que mais tarde

seriam tombados pelo IPHAN, o governo construiu uma série de casas

padrão onde funcionou o palácio do governo estadual, a faculdade de

Direito, o conservatório de música e como residências para os funcionários

que chegavam da antiga capital. Mais tarde, essas casas foram vendidas,

como registrou Monteiro (1938: 151):

Os primeiros prédios concluídos foram os dez destinados aos funcionários

e ao Jardim de Infância. Os dez prédios foram construídos na rua 20. Foi

essa a primeira rua de Goiânia. Nela foram instalados provisoriamente o

Palácio, a Secretaria Geral, o Escritório Central de Obras e a Diretoria

Geral da Fazenda, que por ser muito grande, teve que ocupar duas casas,

sendo uma para Seção de Terras. Uma das novas casas foi destinada à

residência do governador Dr. Pedro Ludovico Teixeira. Outra serviu de

residência ao Dr. Câmara Filho, direto do Departamento de Propaganda

e Expansão Econômica (...) Numa, foi residir o Dr. Sólon de Almeida

Superintendente do Departamento de Propaganda e venda de lotes.

Noutra residiu o Dr. Germano o Roriz até fins de 1935 quando (...) passou

[para]o Diretor Geral e Segurança Publicas Dr. João Monteiro. (Monteiro,

1938:151)

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Goiânia: uma cidade patrimonial?

Mas enquanto essas casas estavam sendo construídas, naquela

que seria considerada oficialmente a primeira rua de Goiânia, denominada

RUA 20, os primeiros habitantes, de fato, fizeram suas casas

de pau a pique e palha às margens do córrego Botafogo, fonte de água

potável. Ai foi instalada a pensão da Dona Maruca, onde todos se

encontravam. Nas margens do mesmo córrego, banheiros públicos

foram construídos e o lugar era fonte de água potável. Nesse primeiro

momento de ocupação havia, portanto, uma identificação com o mundo

rural, muito próximo da visão de mundo dos lugares de onde vieram:

pequenos animais silvestres, árvores frutíferas do cerrado, peixes,

banhos de córrego, noites estreladas enfim uma paisagem bucólica

embora “selvagem”.

Não havia água encanada. Então, as casas foram feitas com fundo, o

quintal, digamos assim, a terminação do quintal passava no córrego

Botafogo. Ai fizeram dois banheiros, forçaram... eles construíram uma

qued´água que tinha o banheiro das mulheres e depois mais para cima

dos homens (Entrevista com Da. Nize de Freitas 19/09/2006)

Foto 03: Rua 20. Eduardo Bilemjian. Déc. 1930. Goiânia. Acervo MIS-GO.

A Rua 20, em construção, foi traçada de forma paralela ao córrego

Botafogo. Entre a Rua 20 e o Córrego Botafogo se formou mais

espontaneamente a Rua 24, caracterizada por residências, embora essa

rua tenha sido marcada pelo lugar, sob uma Moreira, escolhido por

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Manuel Ferreira Lima Filho

Pedro Ludovico para assinar seus primeiros atos administrativos na

capital. Apenas mais tarde, passou a administrar do “palacinho” da

Rua 20. A importância dessa árvore no imaginário dos depoentes, lhe

dá um lugar de destaque nas memórias dos primeiros dias da nova

cidade como é o caso da Dona Virginia Pereira Mendes que em suas

reminiscências conversa com a velha árvore:

Tenho muita recordação de tudo que passou. Tenho a impressão que

você deve estar pertinho dos 80 ou 90 anos de existência. Deus te

abençoes pelo que tivesses, pois quantos anos faz que debaixo de suas

sombras durante o dia e a noite o repouso de um sono tranqüilo. Todos

que te procuram foram recebidos com muita bondade e carinho. Que

lindo destino foi o seu minha bela Gameleira [Moreira]. No dia que

você nasceu, talvez estivesse imaginado que ira ficar bem solitária, bem

sozinha, nesse imenso planalto. Mas o seu destino já estava reservado,

você teria que dar acolhida para todas aquelas famílias que estavam

migrando para essa bela capital. Assim, passaram muitos por debaixo

de sua sombra. (Virgínia Pereira Mendes, (01/11/2005).

Desta maneira, podemos dizer que a Rua 20 era um primeiro

ponto oficial, após todos passarem pelas sombras da velha Amoreira

bem próxima do Córrego Botafogo. O primeiro rito. Era, pois, um tipo

de batismo para quem viesse morar na nova capital. Depois havia o

rito oficial mesmo, de se abrigar na casas da Rua 20. Era uma rua

transitória, mas necessária. Nela, estavam concentrados valores

considerados importantes: a igreja (na Rua 20 morava o Bispo) e ao

lado foi construída a catedral de Goiânia, o Palácio do Governo, a

faculdade de Direito e Conservatório de Música, o Jardim de Infância

entre outros. Portanto, morar na rua 20 era morar perto do poder e do

prestígio. Entretanto, à medida em que a cidade crescia, aos poucos

essa função de liminaridade foi se perdendo. Com a construção do

Setor Sul, durante muitos anos considerado o setor nobre da cidade,

alguns moradores de maior poder aquisitivo construiriam suas casas

nele. Os funcionários e servidores foram também se distribuindo por

outros bairros da cidade, como o Bairro Popular, o Setor dos

Funcionários, o Setor Fama. Alguns moradores, como o advogado e

ex-professor do curso de Direto, Pereira Zeka, permaneceram na mesma

casa construída na década de 40, que seu sogro comprara do Estado.

Os mais pobres continuaram às margens do Córrego Botafogo, e até

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ILHA

Revista de Antropologia

Goiânia: uma cidade patrimonial?

tarde seria uma grande favela, e depois se transformar no Setor

Universitário, onde hoje se encontram as primeiras edificações das

Universidades Federal e Católica de Goiás.

Observa-se, dessa maneira, que a cidade nasceu elitizada, na divisão

de seus espaços urbanos para além de qualquer boa intenção de

seus urbanistas e planejadores. Analisando as narrativas dos pioneiros,

categoria ampla, mas com quem identificamos a primeira e segunda

geração que viram a cidade nascer e crescer, moradores das primeiras

ruas e bairros ou mesmo filhos de políticos e funcionários de alto escalão

na época, têm-se a convergência de dados de que a cidade era dividida

em três áreas: 1) O manto de Nossa Senhora composto pelas avenidas

Araguaia, Tocantins e Paranaíba e Praça Cívica. As margens do Córrego

Botafogo e por último a região Norte depois da Estrada de Ferro e da

Avenida Paranaíba que era asfaltada. Pelo mapa tem-se uma noção desses

espaços. Divisão que fica clara no depoimento da filha do primeiro

prefeito Venerando de Freitas Borges, que nasceu na cidade antes mesmo

de seu batismo cultural em 1942.

Nos anos Dourados, nos anos 50 nós dizíamos assim: Goiânia

esta dividida, da Av. Paranaíba para cima, que o Palácio, era a nata da

sociedade que morava, da Av. Paranaíba, era a classe média baixa.

Então, as pessoas tinham essa rivalidade. Então você queria falar alguma

coisa assim, negativa de alguém, Ah fulano é... não é do lado

Sul. Ela mora além da Avenida Paranaíba. A Avenida Paranaíba era

um divisor, um divisor entre as classe sociais e até hoje isso existe.

Você mora onde? Ah no bairro do buraco? Sempre existiu. E Botafogo,

ali eram invasores, eram lavradores, empregadas domesticas.... ( Nize

de Freitas, 19/09/2006).

Reflexões patrimoniais na perspectiva antropológica

Quando se olha a questão patrimonial pela perspectiva antropológica,

percebemos algumas caminhos que desenham uma tensão com

relação ao tema da preservação, portanto do tombamento, do conceito

antropológico de identidade e do próprio processo inerente a

constituição e mobilidade das formas urbanas e seu dinâmico processo.

Poderíamos também associar com a idéia da Teoria do Conflito de

George Simmel nas diferentes formas de viver o urbano.2

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ILHA

Revista de Antropologia

Manuel Ferreira Lima Filho

A experiência de uma antropologia na cidade de Goiânia (Lima

Filho, 2004) provocou um jogo de espelhos desses conceitos e das

narrativas relacionadas a eles, seja pelos entrevistados, seja pelos representantes

de políticas públicas, seja pelo próprio discurso antropológico.

Num primeiro momento, fica claro que a representatividade do

conjunto de Are Déco, como representante de um tempo áureo do início

da cidade, não tem correspondência direta com as narrativas do mesmo

período em que tais prédios públicos foram construídos. Típicamente

frutos de uma ação governista da Era Vargas, eles representam um

estilo arquitetônico em voga no período da década de 30, 40 e já tardio

como no caso da estação ferroviária da cidade nos anos 50. Estilo tão

diferente do olhar dos goianos que a filha do primeiro prefeito, Nize

de Freitas, perguntou ao pai o por quê daquela forma engraçada do

Cine Teatro Goiânia, ao que ele respondeu “Observa bem minha filha,

o teatro Goiânia é uma galera, observa bem que o formato dele é de

uma galera” e Dona Nize arremata: “ou seja, ele foi inspirado numa

galera egípcia”. Uma galera egípcia em pleno Planalto Central!

Considerado excepcional pelo IPHAN, o Teatro de Goaânia

ganhou o status de proteção federal. Goiânia entrou, assim, em 2001,

no seleto circulo de bens patrimoniais tombados pela União, fazendo

Foto 4 – Mapa de Goiânia (1937) por Attílio Corrêa Lima

Fonte: DAHER (2003).

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ILHA

Revista de Antropologia

Goiânia: uma cidade patrimonial?

jus à atuação do órgão federal que foi instituído pela mesma lei que

criou o tombamento. Como já analisei, Goiânia se equivale à cidade

de Goiás nessa ciranda patrimonial do tempo.

As tensões que resistem como consequência disso, do ponto de

vista antropológico são, basicamente, duas. Primeiro, o estilo, como já

afirmou Metran (2006), não tem permeabilidade na concepção de

morar da população goianiense. Nem mesmo as “casas tipo” do inicio

da cidade, construídas pelo governo estadual, têm a Art Déco como

preponderante. Notam-se elementos desse estilo em algumas casas e

sobrados. Registra-se aqui a resistência cultural por detrás do discurso

e da práxis ideológica e de modernização de Pedro Ludovico e sua

equipe. Como vimos, a mudança provocou um movimento de

resistência na cidade de Goiás. Vencidos pelas mãos fortes de Getúlio

Vargas e de Pedro Ludovico, os vilaboenses quase se transfiguram na

constituição de futuros goianienses. Como que numa atitude tácita,

os descendentes dessa geração mães elegem, ao longo do desenvolvimento

da cidade, o estilo neocolonial como preferido. O estilo é

inspirado no passado e se caracteriza por largos beirais de madeiramento

aparente, recortados, frontões curvos como das igrejas

oitocentistas, vergas de arcos entre outros elementos. Em outras

palavras, os goianienses se rendem ao novo, porém não “abrem mão”

do velho. É só passear pela cidade. Portanto, aqui reside o contraponto.

O que se tombou foi o que o governo elegeu, no passado e no presente,

e não as pessoas, as famílias, as memórias. Disso decorre a questão:

não seria o neocolonial alvo de atenção de tombamento federal,

amparado pela legitimidade de seus moradores? A resposta parece ser

não, do ponto de vista da lei do tombamento, uma vez, contaminada

pelo hibridismo de formas, o neocolonial de Goiânia se distancia muito

do ideal de excepcionalidade. Para isso, o Colonial de Goiás já foi

tombado, poderiam alegar alguns. Contudo, do ponto de vista

antropológico, a negação é constrangedora, pois revela uma distancia

entre aquilo que é concebido como referências culturais e aquilo que é

eleito pelo Estado. Afinal, as culturas não são dinâmicas e híbridas

como quer Barth (1968) e Canclini (2003)? Ou ainda como questiona

Eckert (2002: 78).

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Revista de Antropologia

Manuel Ferreira Lima Filho

“Quem são os guardiões da memória celebrada pelo Estado e divulgada

pelos meios de comunicação de massa ? E quem são os herdeiros dessa

memória ? Estaremos, hoje conformados à memória seletiva de um

discurso oficial ou, estamos ao contrário (...) atentos aos fatores

aglutinantes apreendidos num processo de emancipação do sujeito e

coletivização do conhecimento histórico” ?

O jurista Frederico Marés esclarece que qualquer cidadão ao ver

suas referências culturais ameaçadas, mesmo que coletivas, pode entrar

com pedido de tombamento na justiça (Mares, 1986:23).

Daí formula-se a questão inevitável e provocadora: afinal, para

que serve o tombamento? Ouro Preto foi conservada porque foi tombada

ou porque foi esquecida no tempo, conservando um passado

(Gonçalves, 2001) que só mais tarde seria resgatado como ícone

patrimonial dos tempos modernos? Esse mal-estar na cultura, ou em

nossos arquétipos patrimoniais, para lembrarmos de Freud ou Jung,

talvez possa ser amenizado com a compensação do registro imaterial,

que, aliás, também resvala na armadilha fácil do excepcional. Assim,

podemos concluir que, do ponto de vista conceitual, tanto o

Tombamento quanto o Registro Imaterial são males patrimoniais

necessários, mas insolúveis na dinâmica das culturas.

A segunda questão conceitual que se coloca está diretamente relacionada

à idéia da preservação, tão cara na trajetória brasileira de

construção de uma identidade nacional, de nossas políticas patrimoniais

e que se impregna em nós como se o apego ao passado fosse uma

remissão pelo peso incômodo do atraso, da pobreza, do sertão, da

fatalidade histórica tão retoricamente ensaiada pelo nossos pensadores

da passagem do século XIX e inicio do século XX e tão obsessivamente

colocada em marcha por nossos estadistas e governos. Assim, faz sentido

o que Eckert e Rocha chamam de cidade-ruína que “é a expressão do

conjunto de intenções e de comportamento do homem brasileiro diante

do tempo” (...) “os habitantes valorizam o presente reformulando o

passado” (Eckert e Rocha, 2005: 24).

Nesse vai-e-vem temporal, o movimento que impulsiona para a

modernidade, rompe com o passado, destrói os patrimônios, tornam

inóspitas as relações sociais, individualiza o que foi marcadamente holista

por excelência. A volta ao passado parece querer ressemantizar e fazer

271

ILHA

Revista de Antropologia

Goiânia: uma cidade patrimonial?

marcar o passado no presente: é preciso proteger, contaminar-se de um

passado que nós mesmos destruímos, daí a busca por objetos, coleções,

ruínas. Talvez daí se compreenda uma ambigüidade nas narrativas

patrimoniais do homem urbano, como elucida a voz de um dos pioneiros

entrevistados, que nos disse que mudou radicalmente a parte frontal de

sua casa da Rua 20, uma das primeiras de Goiânia, devido à noticia que

correu de que o Estado iria tombar sua casa, “fiz um pecado patrimonial”

nas palavras dele. No entanto, a parte interna continua intacta. Mas

seu filho adiantou e sentenciou “tem que mudar mesmo, professor, faz

parte da modernização”. Portanto, a contraposição de uma proteção por

proteção sem convencimento ou algo que valha ou que faça sentido é

pura fumaça de retóricas para amenizar nossas sangrias patrimoniais e,

diria, existenciais. Como pensou Lefebvre (2004: 112) o fenômeno

urbano é ao mesmo tempo simultâneo e cumulativo. Simultâneo porque

é ponto de convergências dispares, memórias cruzadas, camadas do

passado, como num corte estratigráfico revela a erosão do tempo,

marcando a ausência, mas ao mesmo tempo demarcando o que ficou.

Cumulativo, pois demonstra vários conteúdos, culturas, técnicas, estilos,

formas urbanas, eu acrescentaria. Daí a coexistência, em uma mesma

casa o quase sentimento de culpa do morador já idoso e o rompimento

o filho, de outra geração, mas que sabe de cór o nome de todos os

vizinhos pioneiros e que demonstrou “controle de impressões” nesse

vis à vis com o antropólogo, numa situação de campo.

Entendo assim que a proteção ou a destruição fazem parte de um

jogo de poder, de controle de impressões e retóricas e de constituição

de personas políticas físicas ou jurídicas. É por isso que na Rua 20 se

encontram fragmentos de um passado representado pelos casarões

como a Casa de Colemar Natal e Silva, Pereira Zeka, a casa eclética dos

Sabino, a casa estilo normando de Helio Naves e aqui e acolá os brisessoleil

e traços retos das casas modernistas. Além disso, tem-se os

edifícios que colocaram abaixo a antiga Cúria e a Casa do Bispo, o

Palacinho de Pedro Ludovico e tantas outras. A Rua 20 é por excelência,

a metamorfose da cidade. Daí sua fisionomia tão distante de qualquer

intenção de tombamento federal ou de qualquer atitude patrimonial

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ILHA

Revista de Antropologia

Manuel Ferreira Lima Filho

dos poderes estadual (que se restringiu a tombar uma casa tipo) e

municipal. O passado agoniza nos estacionamentos da cidade, que

quase tem um carro por cidadão habilitado. E assim, para lembrarmos

Sahlins, poderia dizer que o tombamento esse mito de origem de pensar

patrimonial brasileiro implode nos eventos históricos da cidade que

se transfigura. Mas como qualquer bom mito, suas estruturas arcaicas

permanecem apesar do roer do tempo, e assim, de vez em quando sua

eficácia tece as narrativas e ações concatenadas. E como não poderia

deixar de ser o rito acontece para reificar o mito. Não foi assim com o

tombamento do Art Déco em Goiânia e suas narrativas?

Notas

1 Sobre as questões históricas, ideológicas e de poder identificando os movimentos

políticos e históricos sobre as cidades de Goiás e Goiânia ver o

meu artigo” O Futuro do Passado da cidade de Goiás: gestão, memória e

identidade” (2003).

2 Ver Ekert (2002).

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quarta-feira, 25 de setembro de 2013

História e desenho


História e desenho

(mais uma opção de linguagem em sala de aula)

Lázara Alzira de Freitas

 

Várias linguagens podem se utilizadas em sala de aula, para tirar o professor do estado de ilha, fazendo-o voltar a se sentir, parte integrante de um processo que tem por finalidade o ensino e a aprendizagem.

Entre essas linguagens temos: literatura, cinema, arte, músicas, desenhos animados e outras.

Vamos nos ater neste momento na linguagem áudio e visual através do desenho animado.

Lembrando de relacionar o contudo ao tema trabalhado com o desenho proposto.

- Bob esponja: episódio: o hambúrguer de siri – trabalha uma exploração por parte do patrão. Seu Siriqueijo, o qual impõe uma série de regras para um funcionário exemplar que vão além das obrigações do mesmo e mostra o dia a dia do trabalhador bob esponja.

- Pica pau: história do esporte no episódio: aliança infantil – uma partida de beisebol a qual apresenta regras e funções do esporte.

- Tom e Jerry: para se trabalhar história e memória. No episódio: ah! O amor – apresenta uma constituição da história através de uma narrativa do passado, apresentado pelo rato Jerry, sobre uma desilusão amorosa do gato Tom.

- A turma da Mônica: para os problemas sociais; no episódio Magali, mingau com chuva – mostra os problemas enfrentados por uma cidade inundada pelas águas da chuva.

-Cavaleiros do Zodíaco – episódio 13 da saga do santuário; narra a luta de um cavaleiro para ganhar uma armadura, e assim voltar a terra natal.

 

Não podemos nos esquecer de apontar pontos de reflexão e relação entre atratividade e aprendizagem.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

cont.: Retratos Urbanos...

Continuação:

A crônica, é um gênero literário que, a despeito de ter sido considerado, durante muito tempo, como um gênero menor, tem merecido hoje a devida atenção por parte da crítica. Como afirma Antônio Cândido, não há que esperar uma “literatura feita de grandes cronistas”, assim como tampouco se “pensaria em atribuir um prêmio nobel a um cronista”. Entretanto, o crítico reconhece que, na crônica, “tudo é vida, tudo é motivo de experiência e reflexão, ou simplesmente de divertimento, de esquecimento momentâneo de nós mesmos (...)”. E tudo porque “a crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas (...)”, não necessitando, para tal, de nenhum “cenário excelso”, já que a perspectiva do cronista “não é a dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples rés do chão”.

Nos termos de Cândido, mesmo sendo um gênero sem grandes adjetivações, livre de vôos grandiloquentes, a crônica “pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas”. Assim, é de opinião que a crônica pode dizer coisas sérias sobre inúmeros aspectos da vida. Por exemplo, na apresentação de uma simples conversa fiada. Não é à toa que o crítico, no exato momento em que fala que a crônica perece mesmo um “gênero menor”, sai-se com essa: “‘Graças a Deus’ – seria o caso de dizer, porque sendo assim ela fica perto de nós”.

Entretanto, parece que alguns não compreenderam a mensagem de Cândido. É o caso dos organizadores de História em cousas miúdas, uma coletânea de textos produzidos, em sua maioria, por historiadores sociais da cultura da UNICAMP. Não compreenderam, por exemplo, que o crítico, ao se referir à crônica como um “gênero menor”, não é para desqualificá-la literariamente e sim para valorizá-la. Inúmeros trechos no texto de Cândido indicam essa valorização. Sendo “amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais simples e também nas suas formas mais fantásticas”, ainda que tenha nascido despretensiosa e sem a pretensão de durar, a crônica, em íntimo convívio com a palavra, cada vez mais leve, cada vez mais poética, já não condiz com o viés argumentativo da crítica política dos primeiros tempos no Brasil, quando de seu surgimento com a série “Ao correr da pena”, de José de Alencar

 

Retratos Urbanos no Brasil: a crônica como fonte Histórica (segundo -Gervácio B. Aranha)



 

 RETRATOS URBANOS NO BRASIL:

A CRÔNICA COMO FONTE HISTÓRICA

 

Segundo Gervácio Batista Aranha, o objetivo deste estudo é demonstrar que a crônica publicada nos jornais, que é lida por uma multidão, numa época em que a imprensa não tinha concorrência como veículo de comunicação de massa, constituiu uma fonte cada vez mais recorrente por parte de historiadores preocupados com a emergência do urbano entre os séculos XIX e XX, em especial no que se refere ao modo como os atores sociais produziram, sentiram e representaram a vida cotidiana citadina. Assim, é praticamente impossível focalizar o cotidiano de inúmeras cidades pelo Brasil afora, no período estudado, sem passar pelos cronistas locais. Daí a identificação de muitas delas com seus respectivos cronistas: o Rio, de Assis; Bilac ou Lima Barreto, o Recife de Mario Sette, dentre outras.

De saída, uma advertência: a recorrência aos cronistas urbanos implica certo crédito para com a perspectiva da representação, aqui entendida como tentativa de tradução, no tempo presente, de experiências do outro no tempo. Trata-se, por assim dizer, de uma noção de representação que se pauta numa nova perspectiva mimética, haja vista tratar-se de uma mímesis (O demônio da crítica: literatura e senso comum) que, a despeito de não perder de vista o referente da linguagem, não é incompatível com a ideia de criação. Até porque, dotado de cultura histórica peculiar ao seu próprio presente, ele se debruça sobre as fontes disponíveis com perguntas que não estavam na ordem do dia nas gerações anteriores.

O texto de Gervácio Batista Aranha focaliza a crônica como uma espécie de sonda por excelência para a compreensão da vida cotidiana, captada em seus ritmos e em suas ambiguidades, em que nada escapa aos olhos curiosos desse eterno flâneur, o qual percebe desde os populares que circulam nas ruas, becos ou avenidas, a exemplo de mendigos ou prostitutas, até as últimas transformações da paisagem urbana, dentre outros aspectos por ele observados -, para que, a partir dessa matéria-prima, possa transformar, por meio de recursos literários, fatos brutos do cotidiano em temas de leitura agradável.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

História e Linguagens

Uma belissima publicação sobre a liguagem cinematografica atual - vejam:
Publicado em Domingo, 27 Janeiro 2013
O historiador Luiz Felipe de Alencastro, autor de livros importantes, como o Trato dos Viventes, analisa as relações entre o filme de Spielberg e a política americana de ontem e hoje.
Lincoln, de Nabuco a Spielberg

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO

ESPECIAL PARA A FOLHA

Desde o início das celebrações dos 150 anos da Guerra da Secessão em 2011, a mídia americana registra uma miríade de narrativas sobre o drama mais sangrento de sua história. O jornal "The New York Times", que em 1860 e 1864 apoiou as duas candidaturas de Abraham Lincoln (1809-65), criou um blog intitulado Disunion. Análises de eventos da Guerra Civil são feitas em opinionator.blogs.nytimes.com/category/disunion.

Para não se enredar em batalhas oitocentistas, o diretor Steven Spielberg deixou claro que não era historiador e que seu filme não pretendia retratar fielmente os fatos. Também tentou tomar distância da atualidade. Afirmou que trabalhava no projeto de "Lincoln" havia muitos anos e que o filme não fora lançado no ano passado para não interferir na campanha presidencial.

Pouco importa: a projeção de Lincoln nas telas americanas, europeias, asiáticas e brasileiras foi meticulosamente planejada para coincidir com o espetáculo planetário armado em torno da posse do presidente americano, Barack Obama, no seu segundo mandato.

Logo de saída, a primeira cena do filme sugere que a eleição de Obama concretiza o projeto igualitário idealizado por Lincoln. Na conversa do presidente com dois soldados negros em 1865, um deles diz que o fato de os brancos estarem vendo negros lutar nos regimentos da União abria grandes perspectivas: "Daqui a alguns anos teremos talvez capitães e tenentes negros; daqui a 50 anos, um coronel negro; daqui a 100 anos, o direito a voto...". O tom suspensivo da frase sugere a sequência não vocalizada, mas óbvia: "daqui a 150 anos, um presidente negro".

Com o filme em cartaz, o noticiário fundiu as imagens de Lincoln e Obama. Um florilégio de frases aproximando os dois presidentes pontuou os comentários da mídia americana na semana passada. Tony Kushner, o roteirista do longa-metragem, disse que o discurso de posse de Obama foi "lincolniano". Chris Matthews, da rede de TV MSNBC, abertamente favorável a Obama, preferiu um qualificativo menos usual --"lincolnesco". Um comentarista da CNN classificou a fala de Obama como o "terceiro discurso de posse de Lincoln".

GANCHOS

Na realidade, o filme está cheio de ganchos para se engatar na atualidade americana. Alguns ficam firmes, outros quebram ao serem mostrados. Pai de sete filhos, Spielberg vê os adolescentes passarem o dia vidrados num smartphone ou num tablet. Para transportar a relação entre Lincoln e seu filho Tad, que tinha 11 anos em 1865, ao cotidiano das famílias do seculo 21, o diretor bota na mão do garoto, como se fosse um iPad, os negativos de vidro de fotos da Guerra Civil.

Várias cenas mostram Tad mexendo nas fotos do seu "iPad", acentuando a inverossimilhança dos gestos. As salas dos telégrafos de Washington são filmadas como se fossem lan houses de cidade interiorana onde notícias da internet são debatidas pelos usuários.

Num plano mais geral, a trama se articula à atualidade política. A politicagem de Lincoln para concretizar o voto da 13ª Emenda à Constituição, que aboliu a escravidão, espelha-se nos conchavos do atual presidente para a aprovação do "Obamacare" --como é chamada a reforma do sistema de saúde que favorece os pobres e regula as empresas do setor-- e de outras reformas sociais.

A busca do entendimento entre os partidos Republicano e Democrata, o vaivém entre a Casa Branca e o Congresso faz a vida política de 1865 ficar parecida com a de 2010 em Washington.

Mas há outros pontos importantes no filme. Como notaram alguns comentaristas, o mérito de "Lincoln" consiste em situar a abolição da escravidão no centro da Guerra Civil. Parece óbvio, mas não é.

Em 2010, o governador da Virgínia, Bob McDonnell, publicou um manifesto celebrando os confederados e sua defesa das liberdades estaduais, sem mesmo mencionar a palavra escravidão. Mais ainda, o filme mostra que o escravismo era a base da identidade e da economia sulista.

Numa cena, o vice-presidente da Confederação, Alexander Stephens, diz a Lincoln que o fim da escravidão "extingue" a economia do Sul --e completa: "Todas as nossas tradições serão destruídas e nós não nos reconheceremos mais".

Lincoln, que era advogado, acreditava na tese do "slave power", no expansionismo da escravocracia. Para ele, o escravismo sulista, impulsionado pela decisão da Suprema Corte estabelecendo o primado do direito de propriedade sobre o direito à liberdade (caso Dred Scott versus Sandford, 1857), se espalharia pelos novos Estados do Oeste americano. Daí sua convicção de que era preciso abolir a escravidão definitivamente e prosseguir a guerra até a rendição incondicional dos confederados.

Em editorial de 5 de novembro de 1864, apoiando a reeleição de Lincoln, o "New York Times" diz que o candidato republicano "tem a absoluta confiança da imensa maioria favorável à supressão da escravidão pela força". Caso contrário, aliando-se aos escravocratas antilhanos e sul-americanos, o sistema tomaria conta das Américas. "Do Sul americano para a América do Sul", diz Lincoln para Thaddaeus Stevens, o abolicionista radical, na conversa dos dois na cozinha da Casa Branca.

Na verdade, ao contrário do que acontecia nos Estados Unidos, onde a escravidão era apenas regional, a escravocracia dominava todo o território brasileiro. Assim, o país era citado como exemplo pelos escravocratas americanos.

PROSPERIDADE

Um dos mais eficazes propagandistas da Confederação, o economista James DeBow (1820-67), escrevia em 1860: "O Brasil, cuja população de escravos equivale à nossa, é o único país da América do Sul que prosperou". A prosperidade brasileira parecia muito promissora porque já se sabia que estava solucionada a principal ameaça à escravocracia: a posse dos 750 mil africanos introduzidos depois de 1831 e ilegalmente escravizados desde então.

Em 1854, o então ministro da Justiça, Nabuco de Araújo, institucionalizou a doutrina vitoriosa dos escravocratas: a propriedade dos senhores desses africanos, e de seus descendentes, estava assegurada "por princípios de ordem pública e alta política anistiando esse passado [de ilegalidade] cuja liquidação fora difícil, cujo revolvimento fora uma crise". Em outras palavras, os 750 mil africanos e seus descendentes --que a lei de 1831 declarava indivíduos livres ilegalmente sequestrados por seus alegados proprietários-- passavam a ser escravos até morrer.

Em fevereiro de 1909, em Washington, onde era o embaixador brasileiro e representante da América Latina na cerimônia do centenário de nascimento de Lincoln, Joaquim Nabuco compara a abolição nos Estados Unidos e no Brasil. Para começar, reitera a tese do "slave power". Diz que o abolicionismo intransigente de Lincoln também salvou o Brasil. "Ninguém [...] poderia dizer o que teria sido o esforço pela abolição no Brasil se [...] uma nova e poderosa nação houvesse surgido na América [Confederada], tendo por bandeira a manutenção e a expansão da escravidão."

Em seguida, Joaquim Nabuco, renegando seus escritos abolicionistas, endossa o conchavo de seu pai, o ministro Nabuco de Araújo, e faz o elogio do jeito brasileiro de terminar com a escravidão: "Pudemos vencer a nossa causa [abolicionista] sem ter sido derramada uma só gota de sangue [...] conseguimo-lo num grande abraço de confraternidade nacional, e foram os proprietários de escravos, com a prodigalidade de suas cartas de manumissão, os que impulsionaram a ação das leis libertárias sucessivamente decretadas".

Nabuco reescreve a história do abolicionismo e dissimula a vitória da escravocracia no Brasil. Na conclusão de seu discurso, ele afirma: "Os ideais da geração dos anos 2000 não serão os mesmos dos da geração dos anos 1900". Porém, acrescenta: "A legenda de Lincoln avultará cada vez mais na sucessão dos séculos".

O Lincoln de Steven Spielberg mostra o que a geração dos americanos dos anos 2000 pensa da escravidão americana. Nossos manuais escolares podiam começar a mostrar o que pensam os brasileiros dos anos 2000: houve no Brasil uma guerra civil sem canhões nem baionetas, vencida pelos escravocratas.

O "grande abraço de confraternidade nacional" escravizou ilegalmente, de 1850 a 1888, duas gerações de negros e mulatos livres.



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