Mudança para a Rua 74
Em uma das viagens que a mamãe
fez para Araguari, minha irmã Didi, que também trabalhava ajudar a nos
sustentar, encontrou uma casa para que a gente pudesse mudar. Além de pagar
mais barato, a casa era melhor, só que ficava em um lote com mais duas outras
casas. Agora éramos inquilinos da Ivone. Uma mulher separada que tinha três
filhos a Ritinha que tinha o nome da Avó dona Rita, o Ricardo e a Renilde, uma
criança incrível que tinha uma cabeça muito grande, sinal de hidrocefalia. A
Renilde também não andava, era cadeirante, mas ela era muito animada e
inteligente, sabia de tudo que acontecia em sua volta. Mas nessa época as
pessoas deficientes eram no geral muito maltratadas, a maioria não trabalhava
fora por preconceito mesmo da população. Eram vistos como inválidos.
Neste endereço nós moramos por
mais ou menos oito anos, acho que quatro no barracão do meio e depois mais
quatro na casa da frente.
Os anos eram muito difíceis,
pois se tratava de uma época de ditadura militar e perseguição aos estudantes.
Meus irmãos estavam em idade da juventude que era procurada. Muitos de seus
amigos estavam sendo presos e muitos sumiram e nunca mais foram vistos. Minha
irmãs já faziam faculdade, a Vera entrou na Universidade Católica (hoje PUC)
para o curso de Ciências Contábeis e a Maria Augusta no curso de Serviço
Social. Mas nenhuma delas teve problema porque eu não sei direito, mas nunca as
vi envolvida com qualquer coisa que se relacionasse com o crescimento
individual delas ou da comunidade. Meu irmão Geraldo nesta época cursava o
colegial no colégio de Aplicação e seus amigos riquinhos também não se
envolviam com nada, e por sorte meu irmão Salviano, que nunca se deu bem com os
estudos, este sim, teve alguns amigos que foram presos ou familiares deles que
os levaram a ser vigiados pela polícia nesta época. Meu irmão tinha todo o
jeitão de rebelde e conhecia até mesmo os lugares onde os jovens se reuniam
para leitura e discutir coisas em relação ao marxismo e outras causas. Mas como
ele não era muito bom de leitura então conhecia, mas não se aprofundava em
nada.
Uma certa vez ele me levou em
uns três lugares na Avenida Goiás que servia de esconderijo para os estudantes
universitários se reunirem e fazer suas leituras nos famosos livros de capa
vermelha, (esses eram de capa vermelha porque eram segundo a sociedade da época
induzida pelos militares, livros comunistas) Então eram livros proibidos.
Em Goiânia naquela época tinha
vários lugares na Avenida Goiás e Av. Anhanguera que eram chamados Pit dog.
Nesses lugares ou em pelo menos três deles, quando as pessoas entravam para
lanchar ocupavam uma parte do espaço, o que poucos sabiam era que no fundo
tinha uma porta que dava para um banheiro restrito, mas que na verdade dava
para outra sala imensa com mesas de alvenaria e bancos também de alvenaria e
nestes lugares ficavam expostos livros “comunistas” como eram chamados. Mas na
verdade eram livros que falavam sobre o marxismo, sobre a mais valia e
esclarecia a sociedade sobre a realidade da exploração que estávamos vivendo
naquele tempo de ditadura militar. Eram locais onde só os estudantes sabiam, e
lá também servia para esconder os estudantes que eram mais visíveis aos olhos
dos policiais.
Quando não conseguiam se
esconder, eram pegos, presos e torturados pela polícia naquele tempo de
ditadura militar.
Uma coisa muito importante que
aconteceu comigo naquela época e que me fez enfrentar muita coisa na vida, é
que em uma das passagens de ano, meus irmãos ganharam uma bicicleta monark
vermelha, barra circular baixa, que era para eles ir para o trabalho e quando
ela estivesse em casa eu poderia andar pela calçada e me divertir um pouco. E
assim eu quase todas as tardes, assim que os meninos chegavam eu ia andar de
bicicleta pela calda da rua 74.
Nesta época as crianças em sua
maioria ganhavam bicicletas. O povo em Goiânia andava muito de bicicleta nesta
época, pois era uma época que praticamente não se existia transporte coletivo.
Quer dizer, até já existia, mais no máximo para uns 3 ou 4 bairros de Goiânia,
pois a cidade ainda era bem pequena, e para todos os lugares para onde íamos,
andávamos a pé. Goiânia foi o primeiro lugar (não que eu conhecesse muitos
outros) mas aqui era o único lugar onde se via as senhoras andando de bicicleta
para ir trabalhar, fazer comprar e outras coisas. Pincipalmente nas cidades do
interior, como víamos pela televisão.
Todas as tardes quando eu saia,
os garotos (vários) entre 6 de 14 anos ficavam na calçada de uma das casas e
quando eu passava, eles se colocavam na minha frente, para ver como mulher é
medrosa e a gente balançava a bicicleta e freava até quase cair, e eles riam e
zombavam da gente. Faziam isso sempre.
Muitas vezes eu desisti de ir,
por ver que eles estavam lá me aguardando para zombar. Foi então que certo dia
eu fui e na ida eles vieram pular na minha frente e eu quase cai, eles riram a
vontade. Meu medo de atingir alguém era tão grande de machucar um deles, de eu
cair e me ralar inteira e ainda ser proibida de me divertir, era muita coisa
que vinha a minha cabeça. Uma confusão de sentimentos. Mas na hora que eu voltei,
o garoto maior que se chamava Gabriel, disse aos outros, pode deixar que eu
vou, desta vez ela cai. E ele era muito forte eu fiquei com muito medo. Mas foi
aí que me veio uma coragem fora do comum e em vez de parar eu aumentei a velocidade
e quando ele veio eu fui com tudo e passei por cima dele. Ele, é que teve que pular
e ficou falando, credo, ela é doida, passou por cima de mim, não vou ficar mais
na frente dela não, ela é doida. E assim eu marquei meu território e enfrentei
o medo pela primeira vez na vida. Me lembro da sensação até hoje.
Eu achei essa memória
interessante, porque para mim foi. Poucas pessoas sabem disso, mas esse fato
foi muito importante para o meu crescimento interior. Ali eu descobri que
mulher pode tanto quanto o homem, basta enfrentar a situação que se coloca a
sua frente, pude aprender também que mesmo com medo da situações a gente deve
enfrentar e que toda ida tem volta, então se prepare para voltar melhor do que
foi.
Sem quere o Gabriel me ensinou
muita coisa naquela atitude, tanto que nunca me esqueci deste fato.
Ali na Rua 74 eu tive outros
amigos, alguns que nunca mais vi e que não valem a pena nem contar aqui os seus
nomes e outros como os amigos do Colégio. Nesta época eu já estava na segunda
faze da educação básica, foi a primeira vez quando iniciou a chamada quinta
série. Porque no tempo dos meus irmãos tinha uma prova chamada admissão, era
como um pequeno vestibular para os estudantes cursarem após a quarta série e
irem para o ginasial. Agora já no meu tempo, acabaram com a prova e todos os
estudantes fariam um ano a mais chamado quinta serie até a outava, para só
então passar para o colegial.
Nesta época eu estudei no
colégio Claretiano Coração de Maria, foram anos transformadores na minha vida,
que sai da infância para a adolescência, conheci muitos amigos e levei para a
vida.
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